Uma das maiores vergonhas nos últimos 25 anos é a falta de garimpagem dos fãs e mesmo dos críticos de rock no mundo, em especial no Brasil.
É vexaminoso e constrangedor que as narrativas se limitem ao hit-parade, ao mainstream.
Há uma subserviência generalizada, uma narrativa precária digna de moleques de 14 anos, mas é feita por gente com mais de 45 anos de idade.
Um exemplo é o punk rock.
A maioria das narrativas chega a ser veloz de tão superficial e apressada.
É aquela coisa: "O punk explodiu em 1977 com Ramones, Sex Pistols e Clash, depois veio o hardcore com Dead Kennedys e, em seguida, o punk mais contemporâneo com Bad Religion, Green Day e Offspring". E só.
Citam até Stooges, mas se esquecem de MC-5, New York Dolls e os peruanos Los Saicos, curiosíssimo pioneiro do punk rock propriamente dito, entre 1965-1966.
Buzzcocks, uma banda tão (ou talvez mais) importante na história do punk britânico quanto os Sex Pistols, é criminosamente desprezado pelos roqueiros brasileiros.
Não há uma menção. Não há uma música tocada. Talvez "Fast Cars" só consiga alguma coisa se ela entrar na próxima trilha sonora da franquia Velozes e Furiosos (Fast and Furious).
Nem a ajuda de Marcelo Nova e o tempero baiano que deu na música dos Buzzcocks, "I Believe", que nas mãos do Camisa de Vênus virou "O Adventista", ajudou a divulgar a banda de Manchester.
Nem citando o então romance de Xuxa Meneghel e Pelé ajudou a fazer do saudoso Pete Shelley e seus parceiros razoavelmente conhecidos no Brasil.
Quando faleceu, Pete Shelley comoveu roqueiros britânicos e até estadunidenses. No Brasil, foi um zé ninguém que só recebeu o apoio de uns poucos samaritanos.
E olha que os brasileiros ignoram que, se não fossem os Buzzcocks, o Green Day não teria existido. Billy Joe Armstrong deve muito sua carreira ao que Pete Shelley e banda nos deixaram de legado.
Nem as vindas dos próprios Buzzcocks ao Brasil ajudaram. E foi mais de uma vez. Silêncio total na mídia roqueira. Os Buzzcocks odeiam carros velozes e nós odiamos imprensa lerda.
E a banda de Oxford, Ride, que voltou com fôlego e excelentes canções? Ninguém quer saber de dar atenção a esse "passeio".
O Andy Bell trocou a guitarra pelo baixo no Oasis, dando apoio instrumental aos conflituosos irmãos Gallagher. E nada.
A banda é conterrânea do Supergrass e do Radiohead, mas não teve a mesma projeção.
Recentemente, os hoje titios do Ride foram tocar em São Paulo e quase ninguém notou a força dos quatro músicos que foram ofuscados pelo modismo grunge, que abafou a verdadeira revolução musical que os shoegazers poderiam ter lançado no mundo.
Para piorar, no fim dos anos 1980 as rádios de rock autênticas estavam em crise, enquanto rádios de pop e brega se fantasiavam de "rádios rock", impulsionadas pela canastrice bem-sucedida da 89 FM de São Paulo e estimuladas pelo arremedo de "cultura alternativa" do modismo grunge de 1991-1993.
E aí, vimos revistas musicais de grandes editoras se fantasiando de zines, com jornalistas mais desbocados e iconoclastas, esculhambando artistas de verdade enquanto vendiam grupos medíocres de rock barulhento como "a próxima salvação da humanidade planetária".
Tínhamos selos de grandes gravadoras fantasiados de "gravadoras independentes" e rádios pop ou popularescas brincando de "rádio rock", com aquelas vinhetas em que o sujeito pronuncia a palavra "rock" como se estivesse arrotando.
Rádios cujos locutores, na véspera, exaltavam Amado Batista e, depois, passaram a fingir que achavam os Ramones o máximo.
Aí, o que tivemos foi um emburrecimento da cultura rock, com tanta gente sem especialidade, tanto radialista sem envolvimento no ramo, tanto jornalista querendo esculhambar a arte para abrir caminho só para quem vende e faz sucesso.
E tudo virou um superficialismo atroz. A gente vê muita gente falando de rock sem fugir da zona de conforto do mainstream. E isso inclui até gente boa, jornalista, youtuber com alguma especialização em rock, pelo menos em tese.
Por exemplo, a banda XTC, cheia de canções assobiáveis, com uma sonoridade própria e acessível para o brasileiro médio, é totalmente desprezada.
Nem quando, no começo da carreira, a dupla central Andy Patridge e Colin Moulding imitava, respectivamente, os gestos de Mick Jagger e Keith Richards nos palcos, conseguiu chamar atenção.
E o XTC claramente influenciado pelos Beatles e dando aula de psicodelia com o pseudônimo Dukes of Stratosfear? Nada ajudou.
E os Kinks? Mais falados do que ouvidos, e nem o aval de Damon Albarn, do Blur, discípulo confesso da sonoridade dos irmãos Davies, conseguiu ajudar.
Os Smiths quase caíram no esquecimento, quando, há quase 20 anos, a música "How Soon Is Now?" quase foi creditada a um grupo de baixa representatividade, o Love Spit Love.
O Jethro Tull também caiu no esquecimento, depois de ser bajulado pelo roqueiro médio, o mesmo que se diz fã de Deep Purple ouvindo somente "Smoke On The Water".
É uma cultura rock que acha que a Baratos Afins e a cena independente associada nunca existiram e prefere cultuar os Mamonas Assassinas como "clássico do Rock Brasil".
A banda Fellini, de Cadão Volpato e Thomas Pappon, chamou a atenção do lendário radialista inglês John Peel. Mas quem é John Peel, para um país em que Tatola é considerado um "deus"?
É, da mesma forma, uma cultura rock que acha que Guns N'Roses são classic rock e festeja Miley Cyrus como a mais nova esperança para o rock mundial.
A cultura do "rock de mãozinha", do "rock de linguinha", de gente fazendo gracinha à toa, fazendo sinal do "demônio", feito uns retardados mentais.
Mas mesmo o pessoal que critica esses excessos e defende maior seriedade na abordagem do rock, ainda tem limitações altamente vergonhosas.
Parece que começaram a conhecer os Byrds ontem. E, morto há 14 anos, Syd Barrett, fundador do Pink Floyd, parece que acabou de nascer no imaginário roqueiro brazuca de hoje.
No progressivo, o King Crimson, à maneira dos Kinks, é mais falado que ouvido.
E é uma dureza ensinar o roqueiro médio a ouvir uma banda fantástica como o Van Der Graaf Generator, num meio em que o pessoal acabou de começar a ouvir falar de Gentle Giant. Ouvir falar, sem ouvir as músicas de fato.
E nomes de baixa representatividade no rock, como The Outfield, são supervalorizados no Brasil, enquanto nomes bem mais essenciais (os Buzzcocks são um bom exemplo) são desprezados.
Que cultura rock é essa? É porque as editoras de copyright de sucessos musicais acham mais barato comercializar o Outfield do que uma banda histórica e seminal como os Buzzcocks?
E tudo virou "rock alternativo", menos o verdadeiro rock alternativo, alvo do mais absoluto desprezo até por quem se considera mais antenado no ramo.
Jornalistas fazendo marketing - pelo menos passou a fase iconoclasta, mas, em contrapartida, tem muito jornalista passando pano em muita farsa comercial sob o rótulo de "rock" - , radialistas fazendo gracinha, e por aí vai.
Por isso é que, dos anos 1990 para cá, não confio nos novos talentos do Rock Brasil. Tudo parece apenas recortes de bandas de sucesso, tipo Skank, Charlie Brown Jr., O Rappa, Los Hermanos, Raimundos e CPM 22, com vocalistas soando sempre como um elo entre Supla e Samuel Rosa.
Às vezes é uma banda que mistura Raimundos e Los Hermanos, outra que cruza O Rappa com CPM 22, outra que evoca Mamonas Assassinas com um gancho mais esqueitista, outra que soa um Skank mais punk e por aí vai.
Imagino se a Legião Urbana tivesse surgido hoje. Seria encarada com um silêncio sepulcral, pior do que o silêncio que Renato Russo nos expressa desde 11 de outubro de 1996.
A Rádio Cidade e a 89 FM rejeitariam a banda, se lançada hoje. Que história é essa de "Você vencendo essa batalha, outra guerra vamos ter"?
E veja o tom do "novo rock" da 89 FM, puxado por mais uma banda punk-engraçadinha - espécie de versão "tiozão" do happy rock - do próprio Tatola, o Nem Liminha Ouviu!
Aí não dá para confiar no rock. É por essas e outras que a cultura rock está em baixa. É porque o rock anda muito paradão, em todos os sentidos.
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