Um texto de Uraniano Mota no Brasil 247 chama a atenção.
Intitulado "Reginaldo Rossi, o Rei dos Sem Rei", ele mostra o tom de cansaço das próprias esquerdas em serem... Esquerdistas.
Tentam trazer para si o identitarismo, o espetáculo, o consumo, a festa, enquanto começam a falar mal de antigos líderes políticos, rejeitar a militância e o antigo patrulhamento esquerdista, considerado radical, e passar a ver a "esquerda" com olhos supostamente mais arejados.
Lendo o texto de Uraniano, considera-se em primeiro lugar que ele não deve ser confundido com os textos da intelectualidade "bacana", que não é realmente de esquerda, mas nela se inseriu de maneira tendenciosa.
Os textos dos intelectuais "bacanas" (Pedro Alexandre Sanches, o aluno-modelo de Otávio Frias Filho, é o principal exemplo) são arrogantes, feitos por má-fé, enfatizam a provocação e, embora com abordagem "positiva", possuem surtos hidrófobos constantes.
Mesmo um sereno Paulo César de Araújo vinha com invencionices do tipo atribuir falso esquerdismo a nomes como Waldick Soriano e Lindomar Castilho, como se, sob a desculpa do "combate ao preconceito", tivesse que brigar com a realidade dos fatos.
Esse pessoal todo é analisado pelo meu livro Esses Intelectuais Pertinentes, que só não é sucesso de vendas porque o mercadão se ocupa com romances medievais,Minecraft, jovens vampiros e o desperdício dos "livros para colorir", num país onde jornais impressos são espécie em extinção.
Diferente do panfletarismo agressivo dos intelectuais pró-brega, o texto de Uraniano Mota, que destoa da objetividade natural dos articulistas de esquerda, é um manifesto de pensamento desejoso.
Li o texto e vi mais um artigo religioso, para fazer o trocadilho com os nomes dos padres Reginaldo Manzotti e Marcelo Rossi.
Uraniano, com seu pensamento desejoso, glorifica o "padre" Reginaldo Rossi e a devoção de seus fãs não necessariamente evocando clichês de religiosidade. Isso fica latente no seu texto e não declarado em palavras legíveis.
O pensamento desejoso está na idealização que Uraniano faz do cantor brega, desejando ver nele um "pragmatismo esquerdista" que julga ineficiente em Miguel Arraes.
Uraniano narra um comício de campanha de Arraes para o governo de Pernambuco, realizado em 1986 na Vila dos Comerciários, na Casa Amarela, em Recife, em 1986. Reginaldo estava entre as atrações musicais.
O contraste então se dava com o fato de que Rossi chamava mais a atenção do povo do que o tradicional político que, então, era um dos sobreviventes do pré-1964.
Vejamos um trecho do texto sonhador do colunista:
"Camisa aberta ao peito, calças justas, cabelo black power, Reginaldo Rossi era uma atração máxima, aquela que chamava o público mais despolitizado. Arraes sempre foi um político de ideias de esquerda, mas isso ele fazia ao lado de um grau imenso de pragmatismo. Quem era o rei que atraía o povão? — Reginaldo Rossi. Então vamos a ele. E assim foi.
É verdade que Reginaldo Rossi sempre esteve ao lado de um ideário que se assemelhava à esquerda. O que é isso? Era não ficar ao lado dos que apoiaram a ditadura. Mas o diabo é que Reginaldo sabia do poder de sedução da sua arte, e não se intimidava diante dos deuses mais sagrados da esquerda em Pernambuco. O que isso queria dizer, amigos? Imaginem e acompanhem. Quando ele tomou a frente do palanque, depois das palavras de apoio ao líder Arraes, em uma fala misturada de gíria maluca dos palcos e do povão, o rei Reginaldo mandou ver".
Em seguida, a obsessão textual de Uraniano, sem a agressividade e o pretensiosismo de Paulo César de Araújo, pela "guevarização" da letra bubblegum de "Ai Amor", sucesso de Reginaldo Rossi:
Ai, amor
Você diz isso com jeitinho
Ai, amor
Quando eu te faço algum carinho
Ai, amor
Esse suspiro vem de dentro de você
Ai, amor
É tão gostoso ver teu corpo estremecer, ai, amor
Quando eu te aperto em meus braços, ai amor
E quando eu sinto teu mormaço, ai amor
Também suspiro e fico louco sem querer, ai amor
Essa loucura do amor me faz dizer
Que eu não vivo sem você
Que só você me satisfaz
Que eu morreria nos teus braços
Feliz ouvindo esses teus 'ais'!
Ai, amor
Ai amor, também suspiro e fico louco sem querer
Ai amor, essa loucura do amor me faz dizer
Que eu não vivo sem você
Que só você me satisfaz
Que eu morreria nos teus braços
Feliz ouvindo esses teus 'ais'!
Ai amor. Ai, ai.
Aqui vemos uma tendência, no Brasil, de trocar as bolas, no que se diz ao contraste entre comercialismo e não-comercialismo musicais, invertendo os valores.
Enquanto se glamouriza a música comercial, atribuindo suposta genialidade textual das músicas e suposto engajamento comportamental dos intérpretes, mesmo sendo eles armações empresariais, se demoniza a música não-comercial.
Na música não-comercial, surgem acusações de plágios, fraudes nos créditos de autorias, brigas de músicos e compositores por conta de dinheiro, etc.
No caso da música não-comercial, é verdade que isso eventualmente acontece, mas a estranha ênfase de tais episódios cheira a pura iconoclastia e é feita sem o escrúpulo de derrubar a reputação de grandes artistas.
Já na música comercial, que recentemente teve a supervalorização de um trote de fãs de pop sulcoreano (k-pop), contra o presidente dos EUA, Donald Trump. "Guevarizou-se" o ato, apesar do k-pop ser de um país capitalista da Coreia do Sul e esse pop local ser cruelmente mercantilista.
Mas é uma narrativa que prevalece, porque, infelizmente, as esquerdas estão sendo dominadas por facções identitaristas e espetacularizadas.
Afinal, não tentaram "guevarizar" uma letra de "Xibom Bombom", sucesso do grupo de axé-music As Meninas, apesar da música ser composta por um empresário e suas intérpretes serem muito mal pagas ao divulgar a canção em suas apresentações?
Pois é. Enquanto se desconstrói canções de protesto atribuindo-as (levianamente) a farsas discursivas - como o "esquerdista que elogiou o general Médici" Gustavo Alonso, amigo de Sanches, tentou fazer com Chico Buarque - , se tenta transformar bubblegum em "música de protesto".
Vide Odair José, cujas letras eu li e não achei essa protestada toda.
O mesmo com Reginaldo Rossi, da mesma forma o bolsonarista Amado Batista que, no entanto, explora o mesmo texto musical.
Tudo isso são meras canções de amor, pouco importando se o intelectual sonhador, por boa ou má-fé, tente plantar um "protesto popular" aqui e ali.
A única coisa em comum de Uraniano Mota com os intelectuais "bacanas" é a ênfase na plateia. Como se o valor do cantor brega-popularesco fosse atrair uma maior quantidade de público ouvinte.
Mas isso não seria também atrair "maior rebanho", ou, digamos, "maior gado"?
Não seria uma exploração no sentido religioso do público que assiste às apresentações musicais popularescas? Um divinização das plateias, um endeusamento do ídolo popularesco que "arrasta multidões"?
Ou uma função "milagreira" do "padre" Reginaldo Rossi de atrair uma multidão que o "cansado" Miguel Arraes não consegue atrair?
Hoje vemos a glorificação do espetáculo, da religiosidade, da festa, do entretenimento e da diversão como supostas alternativas de discurso socialista.
Mas esses discursos seguem uma lógica identitarista, e a direita moderada também é identitarista, à sua maneira e talvez de forma mais orgânica e visceral do que nas esquerdas.
Perdidas, na sua boa-fé, nos "brinquedos culturais" que a centro-direita trouxe para o imaginário esquerdista, as esquerdas pensam que é louvando o lazer que trarão uma nova revolução socialista.
Tentam ir para o extremo oposto, no seu raciocínio binário, agora enfatizando demais o lazer, a diversão, com religiosidade e esportes a tiracolo, depois de décadas enfatizando demais o trabalho.
Uraniano, na sua boa-fé, imaginou em Reginaldo Rossi um suposto militante de esquerda "mais eficaz" que o do "velho Miguel".
E aí vemos as esquerdas jogando fora, aos poucos, nomes "cansados" e "datados" como Miguel Arraes, Leonel Brizola, João Goulart, Carlos Marighella, e, mais discretamente, o próprio Lula, em que pese a eventual solidariedade a alguns deles, sobretudo o último.
As esquerdas parecem estar cansadas de serem esquerdas. Talvez, aos poucos, elas estejam perdendo o medo de marcarem presença no Caldeirão do Huck, com seu marxismo lata-velha transformado num breguíssimo e identitaríssimo neoliberalismo festivo e assistencialista.
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