COM TODOS OS EXCESSOS, PELO MENOS A NAÇÃO WOODSTOCK DE 1969 NÃO TINHA UM GOSTO MUSICAL ABERRANTE. O PESSOAL OUVIA BOA MÚSICA.
Foi só elogiar a Andressa Urach para ela voltar a decepcionar, retomando o extinto e, depois, reativado concurso Miss Bumbum, agora como sócia e garota-propaganda.
Certamente que, dentro desse contexto, moças como Aline Riscado e Sheila Mello não ficarão mais legais. Todas fazem parte desse contexto identitarista festivo dos tempos atuais.
Esse identitarismo é uma caricatura do desbunde brasileiro dos anos 1970, uma tentativa tardia de manifestar um hippismo no interior do Brasil, uma onda que durou até mesmo quando o punk já havia sido introduzido no Brasil para valer, em 1980.
Sim, era um desbunde que gerou um grandioso disco como Acabou Chorare, que os Novos Baianos, do saudoso Moraes Moreira, lançaram em 1972 e que tinha a façanha de combinar MPB e psicodelia roqueira.
Era compreensível, naquele Brasil de 1964-1975, que as coisas chegassem atrasado, e ainda mais quando havia um cenário político autoritário e repressivo.
Os Mutantes, por exemplo, poderiam ter tido uma discografia uns dois ou três anos mais antiga, mas só as limitações brasileiras permitiram que o grupo paulista lançassem seu primeiro disco em 1968.
"Ando Meio Desligado", por exemplo, é de 1970, mas soa bem 1967. Não por culpa de Arnaldo e Sérgio Baptista nem de Rita Lee, mas é que o Brasil sempre empurra para mais tarde as oportunidades de dialogar com o mundo.
Os Mutantes até tiveram sorte. Odair José, por exemplo, sempre soou como um cantor de pop-rock italiano de 1964-1966.
Essencialmente, então, a coisa soa pior.
O ídolo brega, autor de "Pare de Tomar a Pílula", é o equivalente brasileiro do Pat Boone.
Ídolos como Paulo Sérgio, Luiz Ayrão, Benito di Paula, Dom & Ravel são os equivalentes brasileiros daqueles roqueiros comportados de 1958-1960 que aproveitaram o hiato militar de Elvis Presley. Tipo Paul Anka, Neil Sedaka, Ricky Nelson, Bobby Darin etc.
Tanto isso é certo que Luiz Ayrão virou um compositor hitmaker tipo Paul Anka. E Benito di Paula o nosso Neil Sedaka. Se bem que Anka e Sedaka se tornaram competentes artistas de pop romântico, diferentes da mediocridade de seus similares brazucas.
Eu vi as letras de Odair José. Não vi uma vírgula da canção de protesto atribuída ao cara. Pior: vi um detalhe numa das canções que descrevi no livro Esses Intelectuais Pertinentes..., o clássico (sem ironia) da literatura que muita gente tem medo de ler.
Vão lá ler para entender melhor o assunto. Chega de ver gente fingindo que leu o que não havia lido.
Mas aí temos a grande diferença da Contracultura de 1965-1970 e seu arremedo tardio de 2010 para cá.
Pelo menos os identitários dos anos 1960 não fechavam os olhos para os temas trabalhistas, para as causas ambientais e para a opressão política.
No Brasil de hoje, os identitaristas fecham os olhos para esses temas importantes, e subestimam o golpismo político do qual repudiam apenas pela letra fácil, mas morta, falada ou digitada nas redes sociais.
Eles se sentem confortáveis no pátio que o golpismo de 2016 reservou para as esquerdas brincarem de "fora isso ou aquilo".
É um desbunde ainda menos clandestino, porque inofensivo. Daí que Jair Bolsonaro está brigando com a direita moderada, e não com as esquerdas. Estas estão infantilizadas e quem houver de esquerdista sério tem seu poder de ação institucionalmente bloqueado.
Até Trancoso, um local "perdido" no interior da Bahia, não é tão escondido assim quanto as comunidades hippie de 45, 50 anos atrás.
E o identitarismo que ocorre aqui é tão festivo que cai fácil até nas propagandas de empresas apoiadoras do governo Jair Bolsonaro, com uma porralouquice bem mais inofensiva do que aquela que marcou o episódio dos "Sete de Chicago".
O episódio descrito no filme Os 7 de Chicago (The Trial of the Chicago Seven) - que tem o ex-Borat Sasha Baron Cohen no papel do alucinado Abbie Hoffmann - é uma manifestação da Nova Esquerda (New Left), movimento lançado por Hoffmann e Jerry Rubin nos EUA.
Era uma esquerda porralouca, mas, mesmo assim, combativa. E eles fizeram uma arruaça num evento do Partido Democrata, em 1968, e foram condenados depois por isso.
Não vou detalhar o episódio nem dar espóiler (passo a aportuguesar o termo spoiler, peço que façam o mesmo e espalhem por aí) do filme (em que pese algumas falhas historiográficas), mas menciono para dar uma ideia de como o pessoal era mais combativo.
Hoje temos esquerdas tão inofensivas que facilmente ganham a adesão até daqueles que, há cinco anos atrás, não suportavam um segundo de Dilma Rousseff como presidenta do Brasil.
Eu, de início, até estava gostando de ver jovens brasileiros nascidos da segunda metade dos anos 1980 para frente conhecendo elementos culturais próprios daqueles tempos hippies.
Coisa que nem os pais dessa patota conseguem mesmo entender.
Vamos combinar que muitos dos mais velhos bem de vida são muito ruins de entender o passado. Vide o pedantismo vintage que contagiou, há quinze anos atrás, a geração de empresários, médicos e economistas nascidos nos anos 1950 e que eram figurinhas fáceis no colunismo social.
Eles nunca ouviram mais do que o pop competente e acessível de um Eagles ou Doobie Brothers, e, quando completaram 50 anos, lá por 2001-2005, encanaram que eram "especialistas" de jazz, falando dos anos 1950 e 1960, época de suas infâncias, como se tivessem sido adultos nesse período.
Daí que eles prometeram um Juscelino Kubitschek, mas nos trouxeram um Jair Bolsonaro, um crossover de Jânio Quadros com Ernesto Geisel. Não tinha que dar certo ver um Roberto Justus usando uma desavença com Marcos Mion para bancar o super-intelectual.
E vamos combinar, também, que esses "coroas tão cultos" nunca contribuíram para oferecer uma cultura melhor para seus filhos.
Daí que a música brega-popularesca - que, pelos níveis de persuasão, pode ser também conhecida como Música de Cabresto Brasileira - é a trilha sonora dessa "Woodstock de Disneylândia" que é o identitarismo festivo de hoje.
Enquanto gente sem teto se acumula nas ruas, exibindo miséria seja no Centro de São Paulo, seja no entorno da Central do Brasil no Rio de Janeiro, o pessoal, em nome da "liberdade", torra dinheiro tatuando o corpo, na obsessão doentia de parecer diferente na sociedade.
E isso diante de uma trilha sonora da pesada: "sertanejo universitário", "pagode romântico", forró-brega e "funk".
Haja músicas irritantes, cantores irritantes, haja canastrice, haja pretensiosismo. É muito bumbum tantã, muitos gluteos malucos rebolando ao som de canções horríveis.
Pelo menos, com todos os excessos da Nação Woodstock, a original de 1969, eles ouviam rock psicodélico, rock pesado, blues e folk da melhor qualidade.
Eles tiveram Jimi Hendrix e Janis Joplin. E os "contraculturais" de hoje têm Wesley Safadão e Anitta.
Na "melhor" das hipóteses, coisas muitíssimo medíocres como Jão, Vitão e Luíza Sonza ou a filha nada roqueira do pseudo-roqueiro Zé Luís, da 89 FM, a Manu Gavassi.
Perto desse pessoal todo, a MPB carneirinha de Tiago Iorc, que visualmente está perigosamente parecido com Luan Santana, parece a música do paraíso.
A MPB tropicalista pelo menos é um caleidoscópio de informações. Falem o que falar contra Caetano Veloso, mas ele tem uma virtude inigualável: procura se informar daquilo que ele é acusado de se apropriar culturalmente.
Seu faro de pesquisador é inegável, em que pese suas passadas de pano na breguice reinante.
Pior são os identotários de hoje, que querem um Tropicalismo sem Caetano, assimilando apenas os pontos negativos do artista.
E aí vemos esse identitarismo festivo, essa "Contracultura de resultados" vigente, pelo menos, desde 2010, fruto da campanha intelectualoide que, patrocinada pela mídia venal, tentou (e, infelizmente, conseguiu) fazer proselitismo na mídia de esquerda.
Gente defendendo a tatuagem (gaduagem?) do corpo, o uso recreativo da maconha, a homossexualidade compulsória, a hipersexualização, uma liberdade amalucada cuja fonte de inspiração, em parte, é o culturalismo conservador e brega trazido pelo hoje bolsonarista Sílvio Santos.
Na melhor das hipóteses, essa "liberdade plena" tem como inspiração o culturalismo burguês da Folha de São Paulo e um vocabulário de poder (ver Robert Fisk e suas "palavras de poder") que inclui a reacionária Jovem Pan como fontes, até mesmo para parte das esquerdas.
É tanta degradação, que, infelizmente, o pessoal passou a "tomar no cool", achando "legal" todo esse lixo brega-popularesco, seja ouvir "funk" e "pagode romântico", curtir sofrência e ver Big Brother Brasil. Ou achar que é vanguarda curtir um esporte saturado e chato como o futebol brasileiro.
O cantor de "pagode romântico" Thiaguinho até tentou ser associado a um factoide envolvendo a it girl Marina Ruy Barbosa - da família do histórico intelectual Ruy Barbosa - , mas ela, pelo menos, disse que nem contato ela tem com o cantor.
Não deu para o "pagode romântico" curtir uma reputação cult como o jazz ganhou a partir dos anos 1950 nos EUA.
Só mesmo aqui a mediocridade é "legal", e para ser cool tem que curtir o "funk", acompanhar os jogos do Flamengo e ficar o fim de noite vendo o Big Brother Brasil. E achar a Aline Riscado e a Sheila Mello as mulheres mais interessantes do planeta.
Não sou obrigado a isso, e vejo com preocupação esse carnaval identotário, que vai da defesa apaixonada da maconha à credulidade nas falsas profecias da tal "data-limite" de um "médium" farsante glorificado por uma "caridade" tão fajuta quanto a de seu discípulo (sério!) Luciano Huck.
O "médium" é uma espécie de Maharishi para a patota identotária, mesmo a de esquerda, chamar de seu, com a mesma fala molenga do indiano, mas pelo menos o falso guru que iludiu os Beatles foi facilmente desmascarado.
Aqui muita gente prefere admitir que Humberto de Campos, depois de morrer, mudou de personalidade e perdeu seu talento, e prefere viver na zona de conforto da dúvida preguiçosa a ter que desqualificar um charlatão através do rigor da lógica.
Entre os alucinógenos materiais das drogas ilícitas e os alucinógenos sobrenaturais do pretenso espiritualismo, os identotários acabam sucumbindo a uma grande confusão mental.
Defendem ideais recreativos que envolvem a libertinagem sexual - à qual se serve uma defesa deturpada, exagerada e descontextualizada da causa LGBTQ - , mas aderem a uma religião, o Espiritismo brasileiro, um Catolicismo medieval de botox e com concessões ao Ocultismo.
Isso porque o Espiritismo brasileiro é anti-aborto, com um radicalismo não muito diferente dos neopenteques da vida.
Mas, para que discutir com as madames e doutores identotários que integram a intelectualidade "bacana" e suas comitivas?
A carteirada de diplomas de pós-graduação, de visibilidade plena nos meios sociais presenciais, do prestígio de documentários e reportagens "imparciais" e de "teses acadêmicas" aplaudidas e transformadas em livros, tudo isso garante a superioridade de nossa intelligentzia.
A intelligentzia retratada no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... e que é culpada por domesticar e infantilizar as esquerdas, contribuindo mais em favor do golpe político do que contra ele.
Afinal, não adianta elogiar Lula e Dilma Rousseff, fazer selfie com Altamiro Borges, exaltar tudo que é esquerdista, pôr sobrenome "Lula da Silva" no perfil do Twitter, se atua em prol da plutocracia patética que esquarteja a Petrobras e espera desaparecer do patrimônio público os Correios e a Eletrobras.
Tanta gente fingida, dentro das esquerdas.
E tanta outra gente confusa, também dentro das esquerdas.
Enquanto isso, os moradores de rua aumentam, com a preguiça acidental que enfurece as elites, mas que é resultado do desânimo pela falta até mesmo da mais árdua oportunidade de superação.
Também, o tal "médium de peruca", o Maharishi do Triângulo Mineiro com apetite pilantrópico igual ao de Luciano Huck, dizia para os oprimidos sofrerem calados e sem queixumes, sob a desculpa de "enfrentarem provas na vida".
Acho que é hora dos esquerdistas começarem a reaprender o que é realmente ser de esquerda e ver a miséria que existe fora do baile das palavras nas redes sociais.
Este é o diferencial da Contracultura original, bem mais consciente socialmente do que seus arremedos tardios no Brasil.
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