Esta semana houve uma polêmica a respeito da repercussão negativa da música "Com Açúcar e Com Afeto", de Chico Buarque de Hollanda, um antigo clássico da MPB de 1966, e que no ano seguinte foi interpretada pela saudosa cantora Nara Leão (1942-1989).
A letra da música supostamente fala de uma mulher que consente com a vida abusiva e irresponsável de seu marido.
A canção teria sido feita a pedido da própria Nara, que queria uma letra sobre uma "mulher sofredora".
Chico Buarque declarou, no documentário O Canto Livre de Nara Leão, de Renato Terra, que a música já não estava mais no repertório do cantor e que ele não vai mais cantar a música.
A notícia foi dada pelo portal Metrópoles, de Brasília.
Ele conversou com feministas e acabou sendo convencido por elas a descartar a canção, considerada "uma apologia ao machismo".
Eu li a letra e não notei apologia alguma ao machismo. Poderia ser uma ironia, uma crítica, e a própria figura do machista não parece ser descrita de maneira positiva.
As patrulhas ideológicas do "politicamente correto", incluindo as esquerdas identitaristas, acabam causando estragos à cultura, com seus exageros.
No exterior, essas patrulhas conseguiram que os Rolling Stones tirassem do seu repertório a poderosa canção "Brown Sugar", por ser uma metáfora para o uso de drogas. Ficaremos sem ouvir um grande clássico do rock e seus arranjos potentes e vibrantes.
E quem pensa que essas patrulhas são um primor de zelo moral e ético impecáveis, está redondamente enganado.
Essas patrulhas morais têm apenas uma indignação seletiva em relação aos fatos da vida. Ou seja, sua revolta não está na natureza dos erros em si, mas nas conveniências que puxam certos episódios para um julgamento de valor bastante desigual.
Um exemplo é o caso do controle do pai de Britney Spears sobre a vida da cantora. Achei isso injusto, terrível e absurdo e fiquei feliz com esse controle ter sido superado e a cantora emancipada socialmente.
Mas nada se compara, todavia, ao massacre moral que a atriz Miranda Cosgrove sofre sem que alguma alma com um pingo de lucidez tenha alguma consciência. Fiz uma página a respeito, com textos em inglês.
Ela é vítima de um boato violentíssimo, lançado no YouTube por uns tais de "Músicos Cínicos", que supõem que "ela morreu e foi substituída por Michael Jackson".
Com vídeos completamente sem graça e com o objetivo de ofender a atriz (conhecida por sua personalidade pacata), os "Músicos Cínicos" (que pelo idioma espanhol, são hispano-americanos), seguem impunemente na publicação dos vídeos difamadores.
Estranho é que o YouTube não removeu os vídeos, mesmo pelo claro tom ofensivo movido por um boato gravíssimo e pelo uso, sem a devida autorização, de material de propriedade da CBS Viacom.
Ninguém se indigna a respeito.
Outro exemplo. Um comercial da Semp Toshiba transmitido pela televisão brasileira entre 1994 e 1995, e que sugeriu uma apologia ao feminicídio.
A peça publicitária, ambientada numa bilheteria no cinema, mostra um garoto saltitante falando do final de um filme com animação. Um feminicídio era o desfecho anunciado pelo menino peralta.
Ninguém se indignou a respeito, e o comercial é tão grave quanto aquele antigo anúncio publicitário das revistas dos EUA em que um homem dá surra numa mulher posta no colo dele, com a barriga para baixo.
Esse "divertido" comercial do Semp Toshiba é INFINITAMENTE MAIS MACHISTA, e violentamente machista, do que uma letra irônica de uma canção de um grande compositor de MPB, por sinal um dos homens mais feministas do nosso país.
Paciência. Tem gente que vê coisas que não existem.
Nossas esquerdas identitaristas pensam que Odair José é "cantor de protesto", e eu li as letras dele e elas são puro bubblegum, de fazer a Família Dó-Ré-Mi parecer o Black Sabbath.
Mas quem acredita na lorota de que Odair José é "o Bob Dylan da Central" ou "o Lou Reed dos Arcos da Lapa" imagina que "Com Açúcar e Com Afeto" tem letra machista.
É nossa classe média, em maioria brasileira mas, em certos casos, o pessoal do exterior, que é tomada tanto de burrice quanto de falta de sensibilidade, que influi na seletividade de sua revolta, uma indignação medida não pela natureza do erro, mas pelo que a mídia diz ser "errado" ou não.
Para quem ignora a gravidade de uma atriz "dada como morta" de maneira tão ofensiva e depreciativa e despreza o teor de apologia ao feminicídio na declaração de um menino num comercial de TV, é sinal que nossa humanidade precisa rever os seus valores.
Talvez lhe faltem um pouco mais de percepção sobre a complexidade da vida. E ouvir menos Odair José e mais Chico Buarque, e ver mais iCarly e Mission Unstoppable e menos Thriller e Moonwalker.
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