DO LULA TRABALHISTA (E), SÓ RESTA A SOMBRA. HOJE É O LULA FESTIVO E IDENTITARISTA, QUE DANÇA UMA BOBAGEM COMO A PISADINHA.
Há um grande cacoete nos brasileiros que é o de confundir contradição com equilíbrio.
Embora aparentemente o livro O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll & Mr. Hyde), livro de 1886 de Robert Louis Stevenson, não pareça ser um dos mais vendidos no Brasil, até parece que seu legado tornou-se forte no povo brasileiro.
Daí que, em várias situações da vida brasileira, se exaltam fenômenos que num momento são uma coisa e num outro momento são outra, como se isso indicasse versatilidade e equilíbrio.
Quem entende dessa forma comete uma grande burrice. Do radialismo rock à espiritualidade religiosa, da vida amorosa à música popularesca, há toda essa mania de confundir fenômenos contraditórios com fenômenos equilibrados e versáteis.
Hoje a contradição está expressa no fenômeno Lula, considerado o favorito na campanha presidencial de 2022, que já ocorre, na prática, desde 2021. E de maneira piorada, com o clima do "já ganhou" que causa preocupação e apreensão em quem tem uma visão mais realista das coisas.
Lula está sendo vítima de suas contradições. A impressão que se tem é que o Lula-raiz, dos movimentos sindicais dos anos 1970, é o maior rival do Lula que hoje janta com a burguesia e que o jargão sindical poderia muito bem classificar como "pelego".
Pelego, termo usado nos Pampas gaúchos para um tipo de arreio para assento a ser colocado num cavalo, é um jargão sindical que se refere ao proletário que faz o jogo dos patrões, em detrimento dos colegas de trabalho, traindo as lutas sindicais.
Pois o que eu vejo é Lula, hoje, dando menos ênfase nas causas trabalhistas, que ele só lembra pelos enunciados, sem trazer uma convicção confiável.
O Lula de hoje tenta se promover com o Lula do passado sindical, mas não é a mesma coisa. Essa é a primeira contradição, a contradição histórica.
Há a contradição de contexto, sob a qual Lula se esquece que o Brasil vive uma realidade pré-distópica, à beira de uma catástrofe.
Ontem houve um deslizamento de Terra, por conta das trágicas tempestades e desastres naturais em Minas Gerais, na histórica cidade de Ouro Preto, considerada um dos marcos iniciais da fase de exploração do ouro narrada em nossa História.
Um desastre destruiu um casarão do Seculo XIX, de propriedade da Prefeitura de Ouro Preto, conhecido como Solar Baeta Neves e localizado no Morro da Forca, onde ocorreu o deslizamento. O prédio é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
O deslizamento, mais uma vez, não foi sem aviso, vide os riscos de incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e na queda de uma grande rocha, em Capitólio, Minas Gerais. Os avisos foram respectivamente em 2015 e 2012. A tragédia do Solar Baeta Neves foi advertida em 2016.
É mais uma tragédia cultural de um Brasil que extermina sua memória, num contexto em que a Cinemateca de São Paulo, atingida por um incêndio, tem obras de recuperação paralisadas.
E aí a gente pergunta para o jornalista cultural isentão, para a intelectualidade "bacana" e para os tais "coletivos culturais": "Prosperidade cultural onde, caras pálidas?".
Se haver "muitas vozes e muitas narrativas" fosse sinônimo de prosperidade cultural, qualquer Feira de Acari seria uma sucursal do Paraíso na Terra.
Infelizmente, o Brasil está culturalmente devastado e suas inúmeras tragédias são fruto de confusões, omissões, pragmatismos, descasos, ilusões, obsessões, credulidades e outros vícios humanos.
Voltando a Lula, já dissemos que o Lula das causas trabalhistas entra em conflito com o Lula festivo dos dias de hoje, que dança a pisadinha, se exibe de sunga na praia e é considerado "gostosão" pela mulherada.
E dissemos que Lula se contradiz ao menosprezar a realidade trágica do Brasil, só lembrada de maneira superficial quando está em jogo o copyright do governo Jair Bolsonaro.
Um Lula que tem a coragem de dizer que o país "viverá a melhor fase de sua história", depois de tantos estragos ocorridos até pouco antes do golpe de 2016, quando, ainda em 2015, o governo Dilma Rousseff estava em crise.
Nessa época, houve a tragédia ambiental de Mariana, também em Minas Gerais.
Mas outras contradições de Lula vêm à tona.
Lula quer preservar seu projeto político, mas se alia a neoliberais que divergem de pontos fundamentais desse mesmo projeto.
Lula quer ser o símbolo maior da retomada das esquerdas na América Latina, mas enfatiza suas alianças com o Centro, eufemismo dado à direita moderada que agora se recusa a assumir a responsabilidade pelo golpe de 2016.
Lula fala que "não vai fazer menos do que fez nos dois outros mandatos", mas não apresenta um programa de governo técnico, detalhado e ao mesmo tempo consistente e coerente.
Lula quer revogar os retrocessos de Michel Temer, como a reforma trabalhista e o teto de gastos, mas se alia justamente a quem ajudou a implantar tais retrocessos.
Sobre isso, correm rumores de que "uma pessoa elegante ligada a Lula" estaria querendo conversar com Temer para reforçar o apoio do MDB, junto a setores que assumem apoiar o petista.
E aí temos também a falácia do "Lulão", do "Lula fortão e bombadão", do "Gigante pela própria natureza", que "ganha todas", que "decide tudo" e que "saberá resolver as alianças mais truncadas".
Só que esse Lula "fortão" se alia com o Centro, ou melhor, a direita gurmê, para vencer as eleições. O que mostra que Lula, na verdade, é um grande fracote político.
Aí a contradição eleitoral. Lula "ganha" todas, como apontam supostas pesquisas eleitorais, "vencendo" todos os rivais, de Jair Bolsonaro ao Lobo Mau. Mas precisa de um Geraldo Alckmin ruim de voto para ser vice na chapa e garantir a vitória nas eleições.
Lula quer ser o símbolo da democracia, mas sua campanha é marcada pela intolerância cega aos concorrentes, com seus adeptos ofendendo a Terceira Via, seja ela que cara tiver, não importando se é Ciro Gomes, Sérgio Moro ou Simone Tebet.
Lula promete demais, quer voar alto demais sob o apoio daqueles que irão cortar-lhe as asas.
E isso é muito preocupante. Mesmo quando, supostamente, Lula é o único que simboliza alguma esperança de melhoria para o país.
Só que Lula não está preparado. Ele se contradisse em vários momentos. Num Brasil cultural, ambiental e socialmente devastado, Lula fala em "fazer o país ser feliz de novo"?
Não se fala isso, numa situação dessas! Limitemos a falar apenas em reconstruir o país e superar dificuldades, que são mil vezes maiores do que as que Lula imagina que irá enfrentar.
O jornal O Estado de São Paulo, vulgo Estadão, alega que Lula cometeu uma porção de erros na sua pré-campanha. Mas os "erros" correspondem à agenda direitista do periódico paulista sediado não tão longe onde eu moro, aqui em São Paulo.
Os "erros" correspondem a posturas de Lula que desagradam a agenda do Estadão, como revogação da reforma trabalhista e do teto de gastos e elogio à vitória eleitoral de Daniel Ortega na Nicarágua.
Eu considero que os erros de Lula são outros, e que prejudicarão seriamente seu governo.
Na teoria, tudo é fácil: Lula vai resolver as divergências, vai agradar com igual sucesso patrões e empregados, mercado e serviços públicos, e superará as dificuldades pesadíssimas como Hércules enfrentando monstros e evitando quedas de prédios apenas segurando as colunas.
Na prática, porém, é o contrário. E a História do Brasil, não muito remota, nos ensina isso de forma bastante contundente.
Vide, com as devidas diferenças de contexto, o segundo governo Getúlio Vargas, também sob as promessas de "fazer melhor do que antes" e de "tentar agradar os conservadores" com algumas pautas moderadas. As pressões políticas fizeram Getúlio, alvo de investigação, cometer suicídio em 1954.
Em seguida, João Goulart, castrado em 1961 pelo primeiro-ministro Tancredo Neves (avô de Aécio Neves, que pediu o golpe de 2016), "padrinho" de uma linhagem de políticos do qual Geraldo Alckmin foi um dos herdeiros, foi golpeado após recuperar o presidencialismo em 1963.
Jango também animou os conservadores pela perspectiva de fazer um governo moderado, inicialmente conservador, castrado pelo parceiro Tancredo, que era quem realmente governava.
Quando Jango recuperou o presidencialismo e voltou a governar, com pautas progressistas ousadas, foi derrubado por um golpe militar.
Em 2016, Dilma Rousseff, que começou conservadora, mas depois tornou-se mais ousada e enérgica, também foi golpeada, mas sob um artifício pseudolegalista de âmbito parlamentar, jurídico e midiático.
As elites que ajudaram a derrubar Vargas e que fingiram apoiar um Jango, ao ser ele domesticado pelo parlamentarismo em 1961, foram o braço civil do golpe de 1964 executado por militares, que ampliaram a dose do veneno com o AI-5.
As elites que derrubaram Dilma em 2016 agora fingem apoiar Lula, desde que seja um Lula convertido num ursinho de pelúcia do neoliberalismo.
Economistas neoliberais, grandes empresários brasileiros, políticos e religiosos conservadores, todos eles estão apoiando Lula "incondicionalmente", para parecer bem na fita. Mas, por baixo dos panos, o pessoal está gostando de Lula porque ele está abrindo mão de seu projeto político.
Lula diz que "não abre mão", que "não aceita mimimi do mercado". Mas na prática o "corajoso leão do PT" se amedronta diante das pressões dessas elites.
As próprias elites estão sorridentes porque acreditam que Lula vai abrir mão de pontos "polêmicos" do seu programa de governo.
Até a revogação da reforma trabalhista e do teto de gastos será relativa, feita nos limites que as abusivas elites do enriquecimento abusivo aceitam que sejam realizados.
Se Lula avançar no seu caminho freado pelos aliados da direita gurmê, o golpe contra ele acontecerá. O Departamento de Estado dos EUA, através do Pentágono, já está de prontidão há um bom tempo.
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