O INDÍGENA VÍTOR BRAZ DE SOUZA, MORTO POR PEDIR O ENCERRAMENTO DE UMA FESTA, E SUA TRIBO PATAXÓ DA ALDEIA NOVOS GUERREIROS FAZENDO PROTESTO NA BR-367, EM PORTO SEGURO.
Um episódio trágico nos pede para refletir a respeito de problemas de ordem humanitária e cultural, neste Brasil distópico.
No último dia 13, o jovem índio Pataxó Vítor Braz de Souza, de 22 anos e com dois filhos, depois de um dia inteiro trabalhando numa das barracas na praia de Coroa Vermelha, entre Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro, no litoral Sul da Bahia, acabou sendo vítima da violência.
Ele queria descansar e não aguentava que uma festa se prolongasse nas proximidades da aldeia.
Esta festa ocorreu numa casa situada na área da aldeia Novos Guerreiros, e a residência foi construída de forma irregular.
A festa era o chamado Paredão, assim chamado por causa das fileiras de caixas de som que parecem uma "parede", e no qual são tocados sucessos brega-popularescos, sobretudo a "pisadinha", lançada por esses eventos.
A casa era obrigada a realizar festas até 22 horas, depois que o proprietário abusou do horário e, notificado pela comunidade, prometeu obedecer a lei local. Isso foi em 2020.
No último 13 de março, porém, a festa se prolongou para 23 horas. Vítor, neto de um cacique da aldeia Novos Guerreiros, disse que iria lá para pedir aos organizadores que encerrassem a festa, porque a tribo queria dormir.
Um cacique tentou acompanhá-lo, mas Vítor adiantou-se a ir sozinho e só mais tarde o cacique o alcançou.
Vítor foi conversar com os organizadores e solicitou o fim da festa. Aparentemente, seu pedido foi atendido, mas ele, ao ir embora com o cacique, foi seguido por pessoas ligadas à organização da festa.
Um homem provocou Vítor dando-lhe um tapa. O jovem reagiu e brigou com o homem, que depois deu dois tiros no rapaz, que ainda pôde se comunicar com o cacique, sem poder todavia falar, e morreu ao ser levado para o Hospital Luís Eduardo Magalhães.
O criminoso já foi identificado e foi pedida prisão preventiva contra ele.
O episódio, que já revela a violência no interior do Brasil que dizima muitos indígenas - que já têm como herança um passado genocida contra os povos pioneiros do nosso país - , também revela uma grande hipocrisia da intelectualidade cultural.
Afinal, a festa do Paredão, associada a um ritmo popularesco, é definido pela intelectualidade "sem preconceitos" como uma "festa do povo da periferia".
Ou seja, o Paredão é supostamente associado ao povo pobre, à "alegria das periferias". E essa visão equivocada é trazida por antropólogos e jornalistas culturais que se gabam por "saberem tudo", "pesquisarem muito" e "entrevistarem muita gente".
Portanto, uma elite intelectual que é quase unanimidade. Só meus blogues, os antigos O Kylocyclo e Mingau de Aço e o atual Linhaça Atômica, é que destoam da canonização digital desses pretensos defensores da cultura popular.
O episódio, então, cria um impasse no maniqueísmo fácil da bregalização cultural, em que o fenômeno popularesco é o "bem" e quem estiver contra é o "mal", neste caso o "preconceituoso", o "elitista", o "higienista".
Um impasse parecido com o que Bia Abramo enfrentou, criando uma "saia justa" com profissionais de enfermagem ao preferir, sob a desculpa do "combate ao preconceito", a objetificação sexual das "proibidas do funk".
Então um jovem membro de uma tribo indígena, que pediu o encerramento de uma festa, seria "elitista" por estar contra uma "saudável diversão das periferias"?
E os membros que estavam no Paredão, ainda que de perfil suburbano, destoam da linda narrativa que os intelectuais pertinentes falam da "juventude pobre que se diverte com os ritmos populares(cos)".
A casa alugada para a festa era de propriedade de um ex-policial. Depois do crime que matou Vítor, seus colegas da aldeia Novos Guerreiros incendiaram o estabelecimento. O grupo realizou também protestos fechando a rodovia BR-367, chamando a atenção sobre a violência contra indígenas.
Os intelectuais "bacanas" - ver meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... - , portanto, desconhecem que nem todo mundo que rejeita o brega-popularesco é elitista. Aliás, os elitistas são uma minoria.
Nas favelas, muitas mães se preocupam com a grosseria dos "bailes funk" e com o risco de suas filhas voltarem para casa engravidadas. Elitismo?
Nas roças, muitos caipiras desconfiam da farsa do chamado som "sertanejo", divorciado das raízes caipiras. Nem a canastrice organizada de Chitãozinho & Xororó se salva da avaliação cética dos caipiras de raiz. Elitismo?
E numa tribo indígena, um jovem que queria dormir para acordar cedo para o trabalho, pediu para o tal "encontro de paredões" encerrar às 22 horas e foi morto. Elitismo?
Como se não bastasse o lobby desse ritmo popularesco e a permissividade com que estas festas são beneficiadas, não raro ocorrendo ao longo da madrugada, ainda temos a seletividade da imprensa quanto ao conceito de poluição sonora, restrita a festas musicais e cultos religiosos.
Tudo bem. Defini-los como poluição sonora é corretíssimo.
Mas se em vez de um Paredão, tivesse uma transmissão esportiva por rádio? A imprensa, por razões corporativas, não definiria como "poluição sonora", até porque a imprensa não iria desfavorecer os interesses dos amigos que trabalham em rádio.
E, neste caso, se Vítor Braz tivesse pedido para um vizinho desligar o rádio e ser morto por isso, o indígena seria o vilão? O indígena teria agido contra a "doutrina da emoção" (como a mídia define a idolatria pelo futebol)?
Os indígenas já não são respeitados. A própria casa que realizou o Paredão foi construída ilegalmente numa aldeia indígena.
Os índios são menosprezados até mesmo pelos intelectuais "mais legais do Brasil", que preferem a precarização cultural da bregalização.
Nossas primeiras manifestações culturais são dos povos indígenas, e as tribos remanescentes já sofrem a tragédia histórica que dizimou tantas tribos no passado.
O desprezo aos índios é um crime diante desse povo que tanto contribuiu para a formação cultural do nosso país, nos oferecendo o seu exemplo de organização social e tratamento com a Natureza e o ecossistema.
Além disso, a violência atinge quem luta por dignidade, por seus próprios direitos, pelo direito de dormir para renovar as energias para o trabalho no dia seguinte. Pelo direito à terra, pelo direito à sua cultura, à preservação do legado dos antepassados.
Além disso, o episódio com Vítor Braz mostra o quanto caiu a ilusão do culturalismo popularesco, mostrando o quanto o tal discurso do "combate ao preconceito" não passa de uma grande farsa.
Um discurso que clama por ser "totalmente contra todo tipo de preconceito", mas que oculta em si preconceitos muito piores e mais graves do que muita gente imagina.
Isso porque quem se manifestou contra o "divertimento" popularesco do "encontro de paredões" não foi o "horror moralista da sociedade de elite", mas um indígena trabalhador que queria sossego para descansar e enfrentar mais uma jornada de trabalho.
Fica nossa solidariedade ao povo Pataxó da aldeia Novos Guerreiros e nosso profundo pesar com a tragédia revoltante que atingiu o jovem Vítor Braz de Souza.
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