Renato Russo virou vidraça.
Assim como Raul Seixas, Elis Regina, João Gilberto, Glauber Rocha, e, entre os que continuam vivos, Chico Buarque.
Por enquanto Belchior é alvo de bajulações dos descolados pró-brega que choram lágrimas de crocodilo a cada "maldito" da MPB autêntica que faleceu.
Entre os intelectuais, temos o luto por Arnaldo Jabor e os esforços da turma pró-brega em distorcer as ideias de José Ramos Tinhorão para botar nos ídolos cafonas do passado uma brasilidade que nunca existiu.
Afinal, até o reino mineral sabe que a música brega sempre foi americanizada e simboliza com exatidão o viralatismo cultural da vassalagem de gente matuta brasileira ao culturalismo comercial estrangeiro.
Só que agora vivemos na Doutrina dos Senões e das Ressalvas, que sustenta a mediocridade cultural em parâmetros pretensamente imparciais.
E o que é a Doutrina dos Senões e das Ressalvas?
É aquela inversão discursiva, em que se tenta sobressair, no que é ruim, pequenas e insignificantes virtudes que agora são glorificadas. São as ressalvas.
E os senões? Eles estão naqueles que, sendo bons, possuem pequenos ou eventuais defeitos que são supervalorizados a ponto de haver linchamento moral contra quem outrora era considerado mestre e gênio.
Na música brasileira, Michael Sullivan pertence ao reino das ressalvas, Chico Buarque, ao dos senões.
Vale chamar Chico Buarque de machista interpretando mal a mensagem da letra de "Com Açúcar e Com Afeto", cujo tema, trabalhado com ironia, era criticar o machismo que explora a mulher na vida doméstica.
Raul Seixas hesitante em socorrer o parceiro Paulo Coelho num episódio de repressão ditatorial, que acusava os dois de promover subversão com a chamada "sociedade alternativa".
Mas o que chama a atenção é a transformação de Renato Russo, um dos grandes artistas do Rock Brasil, em um "saco de pancadas".
Ensaio disso tudo se deu nos anos 1990, pouco antes da morte de Renato.
Com o desmonte das rádios de rock originais, substituídas pelas "Jovem Pan com guitarras" 89 FM (SP) e Rádio Cidade (RJ), o teste veio quando houve o tratamento desigual entre as mortes de Renato e do conjunto popularesco Mamonas Assassinas, ambos os casos em 1996.
Com toda a atitude poser forçadamente roqueira, a 89 e a Cidade deram preferência ao conjunto humorístico que as rádios pop e popularescas já tocavam em alta rotação.
Já Renato Russo recebeu um tratamento frio, embora supostamente "profissional", mostrando o desdém que o mercado "pop rock" dava ao legionário, principalmente depois que ele decidiu gravar músicas italianas.
Em seguida, o fenômeno Charlie Brown Jr. veio esculhambando a Legião Urbana e tratando Renato Russo como se fosse "careta" e "ultrapassado". Em seguida, veio o morde-e-assopra, com o grupo do também finado Chorão gravando "Baader-Meinhof Blues" e embarcando no saudosismo do B-Rock.
Mas o saudosismo não deu certo.
Agora vieram as "denúncias" de que Renato Russo era compositor medíocre, letrista até esforçado mas marcado de muitos plágios nos versos e no som de sua banda.
De repente a visceral "Que País é Esse?" foi rebaixada a um "vergonhoso plágio" de "I Don't Care" dos Ramones.
O primeiro LP da Legião Urbana passou a ser desqualificado por causa de supostas apropriações aqui e ali.
As batidas tribais de "Soldados" agora são "plágio" de "Independence Day", do Comsat Angels (grupo pós-punk que rolou muito na Fluminense FM).
Agora é considerado um "roubo" o fraseado de guitarra que, em "Ainda é Cedo", foi extraído de "Another Time, Another Place", do U2. A mesma música tem linha de baixo inspirada em "Transmission", do Joy Division, outro "crime" da Legião Urbana.
Renato Russo agora é conhecido como "oportunista" ou "prestidigitador poético". Mas até o cenário punk de Brasília, só porque era feito em parte por filhos de diplomatas, passou a ser visto pejorativamente como um "jogo de cena".
Se for por esse raciocínio, teríamos que anular toda a importância que Joe Strummer, ele mesmo filho de diplomata, teve para o punk rock, ao mesmo tempo mantendo o engajamento político e investindo na diversificação musical, evitando que o punk fosse vítima de sua própria rudeza sonora.
Então "punk" é Benito di Paula com suas canções melosas e suas letras tão simplórias que soariam vergonhosas se escritas por uma criança de cinco anos de idade?
O bom agora é passar pano, pedir desculpas aos popularescos por tanta crítica despejada e glorificar a mediocrização cultural, confundindo talento e competência com meritocracia e jogando os valores culturais no lixo.
Vergonhoso.
Renato Russo "plagiava" versos e sons porque queria apresentar bandas pouco conhecidas para seus fãs, que estão mais acostumados com a indigência de uma "cultura rock" que, desde o fim dos anos 1980, se tornou escrava de uma mentalidade hit-parade repetitiva, reacionária e por demais pragmática.
Meses antes de o U2 ser apresentado aos brasileiros com a vigorosa "Pride (In The Name of Love)", Renato Russo apresentava "Another Time, Another Place" num acorde tocado pelo parceiro Dado Villa-Lobos.
Velvet Underground, Public Image Limited, Joy Division - que as "rádios rock", vexaminosamente, rebaixaram a um desprezível one-hit wonder, com "Love Will Tear Us Apart" - e tantos outros eram apresentados por Renato Russo através de suas "apropriações".
"Quando o Sol Nascer na Janela do Teu Quarto" é inspirada em Byrds. "Perdidos no Espaço" tenta soar como uma canção indie de uma banda do selo Baratos Afins. Até Luís de Camões foi apresentado ao público, via "Monte Castelo".
No fim da vida, Renato Russo era fã do Ride, banda que nem fazendo promessa a São Judas Tadeu e Santo Expedito as "rádios rock", ou seja, as "Jovem Pan com guitarras", irão incluir em sua programação.
Renato Russo fazia isso por generosidade, e ele é amaldiçoado com isso.
Mas na música brega, há plágios de rock dos anos 1960, emulando de forma oportunista de Archies a Byrds, dentro de um prisma conservador e musicalmente medíocre, e ninguém reclama.
E aí temos Régis Tadeu falando mal de Renato Russo e Ed Motta, de Raul Seixas, enquanto Chico Buarque de Hollanda, que sempre cantava em favor das mulheres, virou "machista", num país que ignora o feminicídio claramente aludido num comercial da Semp-Toshiba de 1995.
Diante do comportamento culturalista do Brasil de hoje, passando pano na mediocridade e esculhambando os mestres, não posso perguntar outra coisa senão: QUE PAÍS É ESSE?
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