Um estranho maniqueísmo habita o imaginário das esquerdas médias brasileiras.
A ideia de que a alegria é um "patrimônio" das esquerdas e a raiva, da direita.
Por isso é que, mesmo quando referenciais de direita são dissociados de um aparato de hidrofobia, ou seja, de toda uma aparência de raiva e intolerância, as esquerdas aceitam de olhos vendados.
Daí os "brinquedos culturais" da direita, que as esquerdas se apegam por instinto.
Imaginam que conceitos como "viralatismo cultural" ou "culturalismo conservador" se limitam a coisas como Operação Lava Jato, motociatas de Jair Bolsonaro, Jornal Nacional e a "massa cheirosa" da imprensa venal em geral.
Veem o Jornal Nacional horrorizadas com o veneno hidrófobo que quase sempre ocupa suas pautas noticiosas e, depois, veem na novela das nove da Rede Globo de Televisão um refresco, um analgésico.
As novelas das nove da Globo passaram a serem vistas pelas esquerdas médias como "retratos do Brasil" porque as elites acadêmicas acabaram espalhando a narrativa, vigente desde 1990, de que seus enredos "refletem a realidade do Brasil".
A partir daí, as esquerdas médias, no conforto de seus sofás, ficam sonhando com o Brasil dos núcleos não-ricos da novela das nove.
Ficam sonhando com as periferias alegres e envolvidas em situações cômicas nos núcleos pobres que servem de "descanso humorístico" para um enredo que, no seu conjunto, é quase sempre dramático.
Dessa forma, as favelas aparecem como "ambientes felizes", onde o povo pobre consegue "resolver por si só" seus problemas e mantém a alegria até nos momentos de dor.
O "funk" representa a principal festividade dessas "periferias de novela". Mas há também os pagodes caricaturais, que inspiram, na vida real, uma série de solteironas ou descasadas branquelas a imitarem (e mal) as negras que são obrigadas a dançar no Carnaval para faturar em cima do turismo.
Há também a mulher "sensual" que "vence na vida", a "garota pobre" que busca meios de ascensão social, nem que seja como dançarina de "funk" ou coisa parecida.
E há o jogador de futebol "galã", mas meio mestiço, que busca também seu triunfo social como o "rapaz pobre" que busca "superação".
Mulheres "sensuais" e futebolistas "galãs" servem para desenvolver o enredo meritocrático que faz as esquerdas médias, pequeno-burguesas, dormirem tranquilas com esse "progresismo de novela da Globo".
Mas há também os núcleos "não tão pobres assim", mas muitíssimo modestos.
Geralmente é um casal de velhinhos. O vovô é um sujeito bonachão, sempre a questionar os caprichos e críticas da esposa, com muita simpatia e uma voz paternalmente gentil.
Invertendo a relação dramatúrgica, as esquerdas médias procuram no "médium de direita" que usava peruca e fazia literatura fake o Nelson Xavier bonachão do enredo novelesco.
Tudo combinando com o "espiritualismo de fachada" que a pequena burguesia das esquerdas médias defende.
E com tantos "brinquedos culturais" que mostram funqueiros, craques de futebol, "médiuns", mulheres-objetos, pobres sorridentes e outras espécies dessa "fauna dramatúrgica", faltava às esquerdas uma outra figura estratégica.
É a do "bom empresário", ainda que ele seja não exatamente um empresário, mas um político.
Assim, Geraldo Alckmin encarna na vida real o protótipo que, na novela, se encaixaria no perfil gentil e paternal de um Antônio Fagundes e sua fala calma no papel do "bom empresário".
Agora que os "brinquedos culturais" da direita se estenderam no âmbito político, vemos o quanto esses "socialistas" de apartamento de luxo que ditam os padrões de opinião e bom senso nas esquerdas gosta mesmo de ser capacho da direita moderada.
Muitos desses esquerdistas são de primeira viagem, e os relativamente mais velhos, nascidos por volta da década de 1960 e começo da de 1970, viram televisão na época da ditadura militar.
Como eram muito pequenos, e o Brasil vivia sob censura, o que não permitia às novas gerações se informarem da realidade, pensava-se que o culturalismo brasileiro dos anos de chumbo era "imparcial" e concebido de forma "natural", como um ar puro de uma floresta ou bosque.
Imaginava-se a bregalização como algo "espontâneo" e "divertido", e muitos tolos se formaram quando passaram a acreditar que os ídolos bregas eram "vanguarda", mesmo sendo culturalmente retardatários, pegando carona em modismos ultrapassados.
Daí outro "brinquedo cultural", o velho ídolo cafona, às vezes um quase roqueiro "progressista" tido como "cantor de protesto", em outras o velho ídolo romântico reacionário, mas cuja biografia é reformulada em uma nova narrativa, palatável para as esquerdas médias e identitárias.
Brega é viralatismo cultural? Sim, e viralatismo cultural da gema. Mas como não fala "hidrofobês" como Sérgio Moro, Eliane Cantanhede ou Jair Bolsonaro, então as esquerdas acolhem de olhos vendados.
O único discurso pretensamente "otimista" que recebe desconfiança é o de Luciano Huck, até pelo sotaque hidrofobês que sua cara de pouca expressividade emocional transmite.
Mas pouco importa se é o "médium" que mais defendeu a ditadura militar ou o ídolo cafona que defende valores machistas. Ou a mulher-objeto que se oferece como uma carne de rua.
Se eles não falam hidrofobês, e, em tese, fazem o pobre sorrir, as esquerdas aceitam sem críticas, e, o que é pior, não como gente de fora aceita por afinidades estratégicas, mas como se fossem "gente de dentro do mundo esquerdista".
É como se chamasse um corpo estranho de "minha célula". Com tantos "brinquedos culturais" da direita, as esquerdas perdem boa parte de sua essência e não fazem do Brasil um país melhor.
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