O aparente fim do bolsonarismo encerrou com o astral tóxico de boa parte dos brasileiros? Evidentemente, não. Mudou-se o foco e o âmbito desse astral tóxico, através de uma positividade tóxica que pede alegria a todo custo e não admite tristeza, senso crítico, questionamentos diversos. A ideia é curtir a vida enquanto o Lulão, oficialmente falando, vai fazendo o povo brasileiro sorrir de novo.
Se o bolsonarismo estimulava festas ruidosas que perturbaram a vizinhança e os cidadãos que necessitam de uma boa noite de sono, pois na véspera muitos têm que acordar de manhã para mais um dia de trabalho, o lulismo não superou essa paranoia, e em certo sentido a coisa até piorou, pois em nome do "Brasil feliz de novo", ninguém pode reclamar, nem questionar. Que aguente a poluição sonora, a barulheira das festanças dos vizinhos.
Não há uma política de regulamentação de festas noturnas e festas da vizinhança e tanto bolsonaristas quanto lulistas sentem essa arrogância que a alegria tóxica traz e que pode se tornar perigosa, pois muita gente foi morta porque pediu para acabar com a barulheira da festa.
A ordem social que se divide entre bolsonaristas e lulistas é a mesma. Não se trata de um "bolsolulismo" estereotipado, como se os dois fossem rigorosamente a mesma coisa. Não são. Bolsonarismo e lulismo são diferentes, embora até certo ponto representem dois estados de espírito de uma mesma elite que se divide em dois repertórios de escolhas.
O que temos agora é o não-raivismo, ou seja, o que a elite do bom atraso resolveu, já em 2022, expurgar o raivismo, associado declaradamente ao bolsonarismo. Desta forma, o conjunto "democracia", definido pelo não-raivismo, se expressa pelos elementos que envolvem o pouco que é aproveitável do bolsonarismo - um bolsonarismo "arrependido" ou "ameno", menos engajado - com os valores e personagens da direita moderada e do moderadíssimo esquerdismo lulista ou identitário.
Só que isso não resolve os problemas da toxicidade social, como dissemos, porque hoje há uma obsessão em ser "feliz" e "alegre" na marra, afastando toda a simbologia "do contra" associada equivocadamente ao bolsonarismo.
É a mesma lógica algorítmica, um raciocínio binário que segue a natureza da velha ordem social que luta para se manter no poder desde 1973, agora deixando o modo "Mr. Hyde" para adotar o modo "Dr. Jekyll" do seu imaginário, considerando que "médico e monstro", nesta "boa" sociedade, são entes diferentes, digamos, mais próximos de entes "irmãos" do que uma pessoa dúbia.
E aí vemos o clima de festa num Brasil que nem começou a ser, de fato, reconstruído. O que temos são apenas a "casa arrumada" no âmbito político, com as instituições funcionando de maneira legalista, e, no âmbito econômico, uma tímida inclinação para o Estado do Bem Estar Social. Mas, no âmbito social e cultural, o Brasil continua precarizado.
A bregalização cultural prevalece, mesmo deixando em segundo plano a parte bolsonarista dos ídolos popularescos. As subcelebridades aumentam de maneira vertiginosa, a música brasileira de qualidade perde seus espaços e passa a ser esculachada pela crítica.
Enquanto isso, o que oficialmente se chama de "sociedade do amor" é apenas uma parte da elite do atraso que apoiava ou passou a apoiar Lula e passou a ter um astral supostamente oposto ao do astral bolsonarista. Mas o que se vê é a mesma elite ressentida e rancorosa, desumana e apenas inclinada para o hedonismo total, levemente diferente do negacionismo psicológico dos bolsonaristas.
Esta festividade tóxica continua causando poluição sonora nos fins de semana e feriados, impedindo pessoas de dormirem, pois mesmo em sábados, domingos e feriados, tem gente que pode acordar cedo para dar uma caminhada, ir à praia ou fazer uma viagem.
Não vejo humanismo nesses novos protagonistas sociais, pois são uma classe média abastada com todos os mesmos preconceitos, só que conduzidos de outra forma. É a mesma classe média que joga comida fora, que faz festas barulhentas durante a madrugada, que odeia ouvir críticas e odeia acolher o senso crítico alheio - banido de forma preconceituosa pelo mercado e pelos ambientes acadêmicos - , e que vê o povo pobre como um bando de "tribos selvagens" em versão pós-moderna.
A ideia, para essa elite do bom atraso, é que tenhamos que dizer "sim" o tempo todo, até quando o momento não permite, a não ser que o contexto esteja associado formalmente ao bolsonarismo, aí é até aconselhável recorrer a um "não" sempre guardado no armário.
O pensamento algorítmico continua funcionando, e no caso da festividade tóxica a pessoa admirável é aquela que sai todo sábado à noite para festejar e tomar cerveja, enquanto o deplorável é aquele que fica em casa no mesmo horário, preferindo tomar mingau ou achocolatado em pó. As exceções ficam para pessoas com graves doenças ou muito idosas, mas se são os rapazes saudáveis que ficam em casa nesta condição, eles são os "incels". Se são as mulheres que assim agem, são "beatas" ou "castiças".
Tem que entrar em clima de festa, aceitar a barulheira de pessoas que, no atual contexto lulista, preferem jogar conversa fora falando bobagens e contando piadas sem graça, mas que só os envolvidos conseguem achar graça, rindo em gargalhadas histéricas nas altas horas da noite. É o país cujo mercado de trabalho, para se adequar ao espírito do momento, prefere contratar comediantes do que pessoas realmente preparadas para uma função de trabalho.
A positividade tóxica do atual período Lula 3.0 preocupa, e muito, na medida em que temos que sorrir até quando a tristeza toma conta do nosso organismo, até quando enfrentamos decepções na vida. Temos que estar sempre de acordo com tudo, se quisermos estar em boa conta com os petistas e poder ter alguma sorte de lacração nas redes sociais, no mercado cultural ou no trabalho e nas faculdades. Caso contrário, seremos jogados para o mesmo lodo dos bolsonaristas, por mais que também sejamos avessos a eles.
E depois dizem que os lulistas defendem a justiça social. Para quem acha que rapaz solteirão e reservado é sinônimo de "terrorista", o combate à desigualdade social é apenas uma maneira de dizer, para quem se sente em vantagem no Brasil desigual.
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