Ontem foi revelada a tragédia da implosão do submarino Titan, submersível bancado pela empresa OceanGate, incidente que pode ter ocorrido no último domingo e que matou cinco ocupantes: o piloto e diretor-executivo da citada empresa, Stockton Rush, o empresário paquistanês Shahzada Dawood e seu filho Suleman Dawood, o bilionário e explorador britânico Hamish Harding e o ex-comandante da Marinha Francesa e estudioso da tragédia do Titanic, Paul-Henry Nargeolet.
Foi uma tragédia que pode ser definida como metalinguística, pois os tripulantes estavam viajando para ver os destroços do famoso navio Titanic, o cruzeiro marítimo estadunidense que naufragou em 1912, matando centenas de pessoas, depois que bateu em um aicebergue. Os membros eram pessoas ricas que poderiam ter evitado a arriscada aventura, e o submersível teria implodido e esgotado sua reserva de oxigênio na ocasião da tragédia.
Refleti esse incidente e comparei com o "esquerdismo de contos-de-fadas", esse "socialismo cor-de-rosa" do governo Lula e sua pieguice triunfalista que faz o filme da Barbie parecer a franquia Os Mercenários. O Brasil, necessitando de uma reconstrução, sucumbe a um astral "nuvem nove", temperado por uma positividade tóxica que sinaliza claramente atender apenas à parte "boa" da elite do atraso, que recuperou o protagonismo com o atual presidente da República.
Enquanto a fome e a miséria aumentam, Lula só quer falar, fazer discurso. Ele virou o paraninfo da sociedade do espetáculo, fenômeno que existe no Brasil e não se refere à aristocracia ortodoxa que, um dia, brilhava sob os holofotes de Jacinto de Thormes e Imbrahim Sued e, durante um tempo, tinha uma revista toda sua, a Caras, mas ela os abandonou e passou a fazer o papel que os intelectuais imaginavam da revista, um semanário de fofocas de famosos, hoje privilegiando subcelebridades.
Em Paris, parte do roteiro de viagens de Lula neste mês (ele visitou a Itália, falou com o Papa Francisco e várias personalidades italianas, atitude repetida na França e a ter equivalente também na África, como na África do Sul, país-membro dos BRICS), o presidente brasileiro, a convite do cantor Chris Martin, do Coldplay, fez um discurso em prol do meio-ambiente no evento Power Our Planet e foi aplaudido como um popstar.
Não era para Lula fazer essas viagens, mas sabemos que o presidente saiu mudado. Mudou para pior, virando um pastiche do que ele havia sido nos dois mandatos anteriores, que eram moderados para simbolizarem o "governo da mudança", mas tinham sua relativa eficiência se comparado ao confuso terceiro mandato.
O Brasil passou por uma crise, iniciada sob o aparato das jornadas de 2013, e culminou no período golpista da queda de Dilma Rousseff e da ascensão de Michel Temer e Jair Bolsonaro que, juntos, impuseram retrocessos tão cruéis que seus projetos políticos eram definidos como "pacotes de maldades". Mas o que soa estranho é que o inferno bolsonarista se sucedeu ao paraíso lulista sem escalas, sem um pingo de transição.
Na verdade, são dois lados de uma mesma moeda, sem aqui apelar para o caricato estereótipo do "bolsolulismo", pois bolsonarismo e lulismo possuem, cada um, caraterísticas específicas, mas possuem a mesma raiz social: a elite do atraso que, vendo no governo Bolsonaro o canto do cisne do hard power brasileiro, culminado e fulminado pela tragédia da Covid-19, preferiu tirar os anéis do direitismo explicito para preservar os dedos do culturalismo vira-lata que tenta preservar, sem este rótulo, os "brinquedos culturais" que a direita neoliberal deu de presente para as esquerdas infantilizadas.
Afinal, os netinhos dos tecnocratas que se reuniam nas palestras patrocinadas pelo IPES-IBAD e das senhoras que pediam, com os rosários de Padre Peyton na mão, guardados dentro de biblias católicas e evangélicas (incluindo a pioneira neopentecostal Igreja da Nova Vida) e de "psicografias espíritas", representaram uma mudança de atitude em relação aos avós que queriam ver João Goulart fora do cenário político, clamando por sua substituição por generais autoritários.
Os netinhos da geração golpe de 1964, que conquistou o protagonismo pleno dez anos depois, tiveram uma ideia: não seria necessário banir de todo o projeto político de Jango, já que ele poderia ser convertido num arremedo mais suave, que poderia manter algumas medidas "subversivas" que passaram a ser aceitas socialmente, como a manutenção do poder do Estado em setores estratégicos da Economia e da vida humana e, parcialmente, o modelo sociopolítico do Estado de Bem-Estar social.
Ou seja, tentou-se, já nos dois primeiros mandatos de Lula, criar um híbrido que, no âmbito político e econômico, teria leve semelhança ao projeto que João Goulart não conseguiu implantar e que era herdado do legado de Getúlio Vargas. Mas, no âmbito cultural, em vez da autêntica discussão em torno da recuperação das raízes da cultura popular, dialogadas com suas formas de renovação, se preferiu defender a bregalização cultural vigente durante os períodos dos generais Médici e Geisel, em especial este último, cujo governo é tratado como se fossem os "Anos Dourados" do Brasil contemporâneo.
Para essa função de misturar política e economia progressistas com o culturalismo brega dos tempos do "milagre brasileiro", ideólogos com o apetite mobilizador herdado do IPES-IBAD vieram com o papo de "combater o preconceito" em relação à bregalização, algo tão fora de lógica quanto o "combate à corrupção" do lavajatismo.
Verdadeiras "vacas sagradas" do intelectualismo pró-brega, como o queridinho da mídia corporativa Paulo César de Araújo e o "aluno-modelo" de Otávio Frias Filho, Pedro Alexandre Sanches (durante anos infiltrado na mídia esquerdista), comandaram o processo, descrito no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... (Amazon e Clube de Autores).
As esquerdas, mordendo a isca desse culturalismo vira-lata enrustido - seu teor de viralatismo, embora explícito e verídico, não era notado pela ausência de uma estética de raiva e intolerância em seus discursos - , iludidas com a suposta solidariedade ao povo pobre (uma máscara para uma visão burguesa-identitária que trata os pobres como se fosse uma multidão estereotipada de humorísticos da TV), permitiram que o projeto político progressista de Lula fosse sabotado.
Hoje Lula é refém dos seus aproveitadores de outrora. Reduz o seu corajoso projeto de centro-esquerda de 20 anos atrás num arremedo fácil de ser exaltado no discurso, mas com precária aplicação na prática. A sabotagem culturalista de Araújo, Sanches e outros intelectuais "bacanas", fez efeito: abriu caminho para o golpe de 2016, que de tão forte não foi de todo rompido pela atual fase do lulismo, apenas sendo descartado o lixo mais escancarado (Temer, Bolsonaro, Moro, Dallagnol e companhia).
Afinal, o que temos, no âmbito sociocultural é um clima de positividade tóxica que destoa do contexto de prometida reconstrução do Brasil. Um culturalismo herdado dos tempos bregalizantes da Era Geisel que faz com que haja aberrações como os tais "brinquedos culturais", fenômenos, personalidades e valores da direita moderada mas, mesmo assim, bastante conservadora, que são confortavelmente assimilados pelas esquerdas médias por conta de uma simbologia paternalista com o povo pobre (ainda que este seja visto como se fossem um bando de bichinhos domesticáveis).
Até no âmbito religioso se vê a prevalência do Espiritismo brasileiro, religião ainda mais traiçoeira e macabra do que as seitas neopentecostais (posso dizer isso porque segui a religião "espírita" durante 28 anos, entre 1984 e 2012), cujos erros abusivos - entre eles, o dado aterrorizante da morte suspeita do sobrinho de um festejado "médium" de Uberaba - recebem mais uma vez a passagem de pano do colunista do Brasil 247, Ricardo Neggo Tom.
Neggo Tom bota na conta de Lyon os crimes "espíritas" de Uberaba, com a reputação do "médium da peruca" fortalecida por generosas lavagens de dinheiro dos latifundiários do gado zebu do Triângulo Mineiro, grandes proprietários de terras naquela região mineira que, hoje somados aos chefões do agronegócio local, transformaram esta área num reduto bolsonarista. Daí a trabalheira desse Espiritismo de chiqueiro, que comeu do pão que os neopentecostais amassaram, de tentar migrar para o apoio ao lulismo de hoje, apesar do apoio complacente das esquerdas médias.
"Espíritas", funqueiros, ídolos cafonas, craques multimilionários do futebol, mulheres-objetos, num contexto em que intelectuais como Paulo César de Araújo e mulheres-objeto como Geisy Arruda são blindados por um lobby de formadores de opinião dos mais diversos níveis, simbolizam esse culturalismo vira-lata enrustido, mas evidente, que faz com que um ex-vanguardista como Rogério Skylab, com um ar de coitadismo ressentido comparável ao do Monark, preferisse um conservador como Michael Sullivan do que o progressista Cazuza.
Esse culturalismo acompanha o cenário de positividade tóxica que, no cardápio, inclui até um feminismo que odeia os homens e um "amor" que se limita a ser um pálido antônimo ideológico do ódio bolsonarista, pois é tão desumano quanto, vide todo o clima exageradamente risonho nas redes sociais e nos ambientes de trabalho ou mesmo em residências, com pessoas rindo feito hienas e colegas de trabalho com brincadeiras e piadas que, não raro, podem se transformar em valentonismo (bullying).
A positividade tóxica de hoje é uma espécie de "felicidade" agressiva, obsessiva e que ignora a tristeza alheia. Embora bolsonaristas e lavajatistas merecessem a decadência e a punição, os sarcasmos lulistas exageram na dose, como gente que esquarteja cachorro morto.
A solteirofobia também aparece como um subproduto desse hedonismo identitarista, que cria um mito ensandecido do "Incel", o suposto sociopata ou psicopata com dificuldade para ter alguém na vida amorosa. Mas os verdadeiros sociopatas ou psicopatas são os que, nas redes sociais ou mesmo nos convívios presenciais do lazer e do trabalho, ficam zoando da solteirice convicta de uns pobres coitados.
Não se pode ser triste, realista nem ter senso crítico. De que adianta um projeto político e econômico aparentemente progressista - se bem que o atual mandato de Lula chega a ser mais fraco e mais tímido em medidas do que no primeiro mandato - , se no âmbito sociocultural se observa a prevalência de um legado cultural expicitamente herdado da ditadura militar, como comprovam os "brinquedos culturais" que reduzem a abordagem do povo brasileiro a uma visão etnocêntrica de novela da Globo?
Nesse cenário todo de positividade tóxica, os formadores de opinião e de bom senso, por mais que se achem "donos de tudo" (dos pobres, da verdade, do futuro e até do mundo!), não escondem seu pertencimento a uma elite bem-vivida da classe média bem abastada, cujos avós pediram a queda de Jango, quase seis décadas antes de seus netinhos virem com a ideia de, em vez de reprimir, pasteurizar um projeto político de esquerda.
É essa elite do bom atraso, a "classe média de Oslo" convertida em "classe média de Zurique", depois que um economista estadunidense disse que o Brasil seria "a Suíça latino-americana", que faz com que esse Brasil intoxicado emocionalmente, tomado de arrogância e ganância, desesperado em virar potência do Primeiro Mundo sem condições sociais para isso, vire o submersível Titan da positividade tóxica.
Os mortos do submarino da OceanGate, de vida nababesca, buscavam a exploração do turismo mórbido da tragédia do Titanic. A "boa" sociedade do Brasil positivamente tóxico de hoje buscam a repaginação do culturalismo vira-lata do "jeitinho brasileiro", do espiritualismo obscurantista, da bregalização e do arrivismo blindado como se fosse um ato de coragem e perseverança, capaz de "canonizar" oportunistas diversos que podem ser Paulo César de Araújo, Geisy Arruda, Michael Sullivan mas, lá de Salvador, um Mário Kertèsz da vida.
E o Brasil navega para o abismo de um positivismo tóxico e sem freio, ao som de música brega-popularesca e sob as bênçãos de "médiuns espíritas" e seus "fakes do bem". Até que as neuroses dessa Torre de Babel festiva que apoia Lula implodam e façam afundar esse Titanic que sonha com o Primeiro Mundo até este sonho ser destruído com o duro choque do aicebergue da realidade.
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