Diferente do que ocorreu nos governos de Juscelino Kubitschek e João Goulart, quando havia debates e esforços de aprimorar a cultura brasileira, os dois governos Lula preferiram preservar o culturalismo conservador vigente desde os tempos do "milagre brasileiro" da ditadura militar, com direito a ideólogos como antropólogos, historiadores, jornalistas culturais e cineastas de documentários que, com uma atuação que lembra os ideólogos dos antigos IPES e IBAD, defenderem a bregalização cultural.
Em uma atitude arriscada e constrangedora, as esquerdas, como que num suicídio intelectual, acolheram os chamados "brinquedos culturais" que, postos em conjunto, mostravam um Brasil mais próximo de uma novela do horário nobre da Rede Globo do que de um país em busca de progresso, desenvolvimento e justiça social.
Os "brinquedos culturais" combinavam uma visão etnocêntrica do povo pobre, tratado como se fosse um misto de bichinhos domesticados com estereótipos de habitantes ingênuos do Paraíso da literatura mística-romântica, com conceitos que envolvem meritocracia. As esquerdas acolhem com facilidade esses valores conservadores por causa da ausência de uma estética de raiva no seu discurso e pela promessa de "paz universal" e "vida melhor para todos".
Nesta "novela das oito-nove" chamada Brasil, personagens próprios desse imaginário direitista, combinando obscurantismo religioso e uma forma etnocêntrica e paternalista de ver as classes populares, acabam enganando as esquerdas.
São as "madres" e "médiuns" vinculados a uma religiosidade medieval de moral punitivista, mas que, por aparecerem ao lado de pessoas pobres e, apesar das personalidades ranzinzas (cujo mau humor é atribuído às doenças da velhice), correspondem a uma cosmética discursiva ausente de raiva explícita, o que pode dar a falsa impressão de simbolizar uma religiosidade progressista e futurista, arrancando com facilidade lágrimas dos incautos, como que num orgasmo religioso da masturbação pelos olhos.
E se existem esses entes "sagrados" que a direita introduziu no imaginário de esquerda, há também os entes "profanos". É o funqueiro com o mesmo discurso vitimista de sempre, é o astro milionário do futebol que surgiu como menino pobre jogando pelada descalço (discurso meritocrático), é a moça pobre que "erotiza demais" para sustentar a mãezinha, é o velho cantor cafona que narra, em seus sucessos, o miserável "consolo" do álcool para homens fracassados na vida etc.
É uma narrativa dotada de aparente poesia, o que faz com que quase todo mundo não acredite que isso faça parte do culturalismo vira-lata. Mas faz, e muito. E o pior é que as esquerdas, por ironia, aprendem com Sérgio Moro o que é seletividade. O ex-juiz, através da Operação Lava Jato, selecionava quem deveria ser investigado e condenado, poupando os principais figurões do PSDB e forças aliadas.
No culturalismo vira-lata, o chamado senso comum da elite do atraso convertida, agora, em apoiadora de um lulismo domesticado, apenas se reconhecem sob tal denominação aqueles que representam uma estética da raiva: Jair Bolsonaro, Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, Carla Zambelli, Janaína Pascoal, Kim Kataguiri, Allan dos Santos, Monark, Silas Malafaia, Roger Rocha Moreira ou quem adotar uma atitude que esteja de acordo com tal cosmética do raivismo.
"Médium espírita" vomitando reacionarismo num antigo programa de TV? Muitos dificilmente aceitam que isso também seja culturalismo vira-lata. Imaginam que a literatura, em verdade piegas e retrógrada, dos 400 livros "mediúnicos" do tal "médium da peruca", são "sofisticados" e "de conteúdo sábio e progressista", porque, por mais que preguem que a pessoa deva aguentar as piores desgraças em silêncio e sem reclamar da vida, as esquerdas se deixam levar pela forma dócil e simpática com que esse receituário perverso é transmitido para as pessoas.
Só que as esquerdas e, com elas, a chamada "sociedade democrática", acolhendo esse culturalismo conservador dos "brinquedos culturais" - que devem ser entendidos como valores cuja essência foi herdada do imaginário "normal" dos períodos ditatoriais dos generais Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel - , acabam corrompendo seus níveis de compreensão da realidade, não raro legitimando valores contrários às causas progressistas e democráticas que se vendem sem a embalagem raivista hoje consagrada pelo bolsonarismo.
Para quem se julga "contra qualquer tipo de preconceito", os novos preconceitos sociais surgidos são preocupantes. Não se pode ter senso crítico, não se pode raciocinar de maneira aprofundada as coisas, assim como, diante da visão totalitária do hedonismo "democrático", também não se pode ser solteiro nem passar as noites de fins-de-semana em casa, sob pena de ser classificado de "terrorista", conforme um surrealismo digno da literatura de Franz Kafka.
É constrangedor ver, por aí, intelectuais, jornalistas e artistas cortejando ícones da direita por conta de conveniências diversas. Durante um tempo, Zezé di Camargo e Fernando Collor viraram queridinhos das esquerdas. Collor se "partia" em dois, como se o ex-presidente que sofreu impeachment por corrupção não fosse o mesmo senador que rejeitava as pautas abusivas da revista Veja. Zezé di Camargo, por sua vez, escondia sob o tapete o seu voto para Ronaldo Caiado, supervalorizando o voto condicional em Lula e vivendo quinze minutos de fama ao lado de intelectuais e artistas de esquerda.
Em contrapartida, nomes que representaram uma trajetória progressista e humanista se dividem hoje entre uma aversão secreta disfarçada por um apoio protocolar, como é o caso de Leonel Brizola, Oscar Niemeyer e Paulo Freire (admirados superficialmente pelas esquerdas médias, até que suas ideias "radicais" venham à tona), e uma rejeição aberta, como é o caso de Renato Russo, Cazuza, Tom Jobim e João Gilberto, este tendo falecido mais pobre e abandonado do que muito ídolo da música brega.
Da mesma forma, intelectuais como Vinícius de Moraes, Sérgio Porto / Stanislaw Ponte Preta, Glauber Rocha, Millôr Fernandes e José Ramos Tinhorão também seriam cancelados ou apenas apreciados por um apoio formal e protocolar. E isso num cenário em que intelectuais pró-brega, para justificar suas sandices conceituais sobre os fenômenos popularescos, descontextualizavam suas ideias para usar Gregório de Matos, Oswald de Andrade e Chiquinha Gonzaga para explicar fenômenos como É O Tchan, Odair José e Calcinha Preta.
O raciocínio algorítmico da dicotomia "raiva x alegria" das esquerdas médias e da neutralidade "democrática" também investe em outras distorções. Se uma pessoa, com mentalidade progressista e humanista, sai bradando que o "funk" trata o povo pobre de maneira caricatural e ridícula, ele é tido erroneamente como "reacionário", até "bolsonarista".
Se, em contrapartida, o "médium" ou o simples palestrante "espírita", ou de uma corrente mais conservadora do Catolicismo, pregar que o oprimido tem que suportar uma série de desgraças pesadas, mesmo depois de não aguentar mais, porque no futuro terá "uma vida melhor", e dizer isso de maneira suave, simpática e em linguagem quase paternal, as esquerdas médias tratariam essa visão como "progressista" e até "esquerdista", se esquecendo que o conteúdo dessa pregação seria, sim, digno de um repertório ideológico bolsonarista.
Essa visão complacente e, de certa forma, ingênua em prol desse culturalismo conservador enrustido já criou as condições psicológicas para o golpe político de 2016. O senso crítico que as esquerdas deixaram de ter, por conta da aceitação submissa aos "brinquedos culturais" que, em tese, faziam pobre sorrir, caiu nas mãos da direita. Ver que contestações à supremacia cultural brega-popularesca, que as esquerdas se recusavam a exercer, caíram nas palavras de um Rodrigo Constantino é humilhante.
Correndo atrás do próprio rabo, as esquerdas médias já começam a surfar no intragável modismo do brega-vintage, pegando Renato Russo para Cristo e glorificando a terrível "poesia" de Michael Sullivan. A gourmetização das baixarias, da estupidez e das grosserias que a música brega-popularesca produziu, pelo menos, de 1968 para cá, hoje é alvo de saudosismo e nostalgia, e é assustador que o que era degradante nos tempos de Médici e Geisel seja visto hoje como "preciosidade nostálgica".
É como se, trinta anos depois, os retrocessos do bolsonarismo fossem glorificados por uma narrativa gourmetizada pelas esquerdas do futuro. Deixaremos isso ocorrer? Ao apoiar de ídolos cafonas (cujo sucesso era patrocinado até por fazendeiros que mandavam matar líderes camponeses) a "médiuns espíritas" (o mais famoso deles era um serviçal do coronelismo do Triângulo Mineiro), as esquerdas, na prática, legitimam, consolidam e fortalecem o poder das forças de direita que dominam o Brasil.
Afinal, esses "brinquedos culturais" foram difundidos a partir de um projeto culturalista da ditadura militar, através de um mercado controlado por grandes corporações e por meio de uma mídia controlada por grandes oligarquias. Elas produziram um falso paradigma de humildade, pobreza e simplicidade que enganaram as esquerdas, que de maneira vergonhosamente complacente acolheram os "brinquedos culturais" com base nesses estereótipos de pretensa modéstia.
Daí ser constrangedor ver um "esquerdista tradicional" como Rogério Skylab jogar fora sua reputação de artista de vanguarda e se nivelar a um "Monark petista" demonizando a grandeza de Renato Russo e Cazuza, enquanto glorifica a falsa simplicidade da música brega patrocinada pelas mesmas forças que, nos últimos dez anos, trabalharam para criar o mito de Bolsonaro.
Isso é um grande perigo. As esquerdas mordem a isca e tomam como "seu" um repertório cultural de "médiuns", funqueiros, mulheres-objetos, ídolos cafonas do passado etc, e caem na tentação arriscada de ver a pobreza não mais como um problema social, mas como uma "identidade" e, pasmem, um "modelo de vida", como se observa no discurso de glamourização das favelas, por exemplo.
Mantendo essa posição, e outras posturas estranhamente autoritárias como explorar o mito segregatório do "InCel" (o nome do excluído social anteriormente conhecido como "nerd", palavra sequestrada pela "boa" sociedade para definir fãs de quadrinhos, Informática e seriados de TV), as esquerdas acabam, mesmo sem querer, assinando uma carta de autorização para a volta do bolsonarismo.
Os "brinquedos culturais" simbolizam um Brasil conservador, retrógrado, em muitos aspectos focando não o futuro, mas o passado, como nas "profecias de data-limite" que, sob o pretexto de dar uma predestinação futurista ao Brasil, quer na verdade restaurar o antigo Império Bizantino medieval em solo brasileiro.
Por trás dos vernizes de simplicidade, modéstia, progresso, agregação social, felicidade e outras qualidades positivas, os "brinquedos culturais" escondem um conteúdo e uma essência profundamente conservadores, em que valores como a submissão religiosa e o escapismo hedonista, valores "opostos" mas presentes no ideal medieval (o Carnevale, ancestral do Carnaval, era o espaço para as práticas hedonistas normalmente contrárias ao moralismo da Idade Média), servem como analgésico para uma sociedade cada vez mais desaconselhada a pensar criticamente e a se mobilizar de forma combativa.
Assumindo esse repertório de valores, as esquerdas mostram sua fragilidade ideológica, sua confusão mental e elas são negativamente expostas por uma direita que, vendo o ridículo do culturalismo piegas e cafona adotado pelas esquerdas, se fortalece e, tomando para si o hábito "antissocial" do senso crítico, tem em mãos as ferramentas certas para um futuro golpe político.
Desta forma, tudo que as esquerdas bregas conseguem fazer é dar poder para a direita alternativa.
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