Ninguém conseguiu entender o texto que publiquei sobre o efeito que o governo Lula trouxe para os brasileiros e que o AI-5 da ditadura não conseguiu fazer. Brasileiros conformados, resignados, felizes sem muito motivo, rindo à toa sem que nosso país tivesse algum avanço concreto. E quando se fala que há um avanço concreto, é porque se fala em avanço concreto.
As pessoas veem Instagram demais. Quando estão no trem, não veem a paisagem e preferem se distrair nas postagens do celular. A positividade tóxica não se limita à supermodelo com ares de dondoca que, passeando de iate sob um sol escaldante, fala que "todos temos que aproveitar as coisas boas da vida".
Daí que vemos o quanto a realidade, para essas pessoas, sob influência dos 30% que mandam no senso comum dos brasileiros, é simplória, prosaica, e a lógica binária. Nnguém entendeu por que este blogue disse que Lula fez com os brasileiros o que o AI-5 não conseguiu fazer.
É porque eu ando pelas ruas e vejo a realidade sem paixões. Sei que a profissão de jornalista está desmoralizada, jornalista tem que ser showman, no contexto em que redes de televisão fazem demissões em série de jornalistas talentosos e experientes, e os jogos de interesses fazem o mercado de trabalho de Comunicação sofra a invasão de comediantes em cargos do tipo Analista de Redes Sociais.
Vide o caso do humorista de carreira com 45 anos, membro de um grupo famoso e que conseguiu um emprego porque enganou o empregador numa entrevista, fazendo um resumo de uma suposta carreira jornalística longa demais para sua idade.
Mas se até a mídia alternativa, com jornalistas talentosos, deixou de lado a promessa de recuperar o autêntico jornalismo para promover tietagem ao presidente Lula - o Brasil 247, queiram ou não queiram, se comporta como se fosse o fã-clube do petista - , então ser jornalista honesto é, praticamente, nadar contra a corrente num dia de tempestades e maremotos em alto mar.
Tenho que juntar as peças de quebra-cabeças. Essa é parte essencial da missão de um jornalista. Quando ele faz uma reportagem, ele junta as peças das entrevistas colhidas e das pesquisas realizadas, e monta uma narrativa dos fatos. Em muitos casos, informações desagradáveis vêm à tona e o jornalista terá que respeitar o caráter fidedigno desses dados que podem desafiar suas convicções e crenças iniciais.
Apoiei Lula até 2020. Ouvi com gosto as entrevistas que ele fez quando era preso. Naquele ano meu voto em Lula estava quase certo, até que o petista, quando se tornou candidato à Presidência da República, passou a cometer erros constrangedores. Apostou numa "frente ampla" na qual tem que pagar a conta, trocando a ministra do Turismo, Daniela Carneiro, por um bolsonarista, Celso Sabino.
Por sorte, os conflitos de Lula com o Congresso Nacional, por enquanto, se amenizaram, por conta da aprovação da reforma tributária, uma das propostas de campanha do petista, ocorrida ontem. Lula, é claro, teve que agradar os parlamentares, pois, em seis meses, o presidente liberou cerca de R$ 30 bilhões para o Legislativo votar a favor do presidente, através das tais emendas. Deputados e senadores nadam em dinheiro, enquanto os auxílios financeiros para o povo pobre mal conseguem atingir o valor de R$ 3 mil.
O que pesou para eu desistir de votar em Lula - votei em Ciro Gomes no primeiro turno e nulo no segundo turno, em 2022 - foi que ele estava em clima de festa, como se ele admitisse a decadência do Brasil sob Jair Bolsonaro da boca para fora. Lula não pareceu aceitar de bom grado a tese de reconstrução do Brasil, pois o petista tratava a situação do país como se tudo já estivesse bem e apenas bastava tirar Bolsonaro e sua turma do poder.
Achei isso uma grande falta de respeito. Uma alegria maior que a festa que, por sua vez, não deveria ter sido feita. Houve até confetes e serpentina num evento do PT. E também se realizou o desnecessário Festival do Futuro, gratuito mas oneroso, um constrangedor festival de música em que a MPB servia de "escada" para as atrações brega-popularescas.
E isso contagiou a classe média abastada que, sendo praticamente a maioria esmagadora que usa as redes sociais. Por isso tem que imperar uma narrativa conformista, resignada, feliz por pouca coisa, um tanto alienada e sem analisar criticamente a realidade em que vivemos. Problemas? Que eles fiquem longe, no tempo e no espaço, em romances de cavaleiros medievais ou de mocinhas perdidas em florestas góticas, "garotas do lago" sem lago, mas sempre com aquelas árvores sem folhas sob tétricos céus nublados.
Por isso ninguém entendeu coisa alguma quando se falou que Lula fez com os brasileiros o que o AI-5 da ditadura nunca conseguiu fazer. Eu escrevi o referido texto porque fiquei horrorizado com o quadro de discriminação do senso crítico e da rebeldia que se vê hoje em dia, quando as "novas canções de protesto" passam a ser os sucessos inócuos "Ilariê", com Xuxa, e "Xibom Bom Bom", com As Meninas.
Ver um ex-vanguardista como Rogério Skylab - hoje rebaixado a um Zeca Baleiro "cabeça", enquanto o Zeca Baleiro hoje soa como o Márcio Mello que "dá certo" - , na cara dura, dizer que Renato Russo e Cazuza são "horríveis" e que as esquerdas médias preferem esculhambar esquerdistas intelectualizados que são trocados, na afeição, por direitistas que, em tese, "fazem o pobre sorrir", como são os "brinquedos culturais" trazidos pela mídia corporativa desde a Era Médici.
E é isso que quis explicar. O Brasil está preso a valores culturais próprios da Era Geisel. A bregalização musical, o obscurantismo religioso assistencialista, o fanatismo pelo futebol, e mesmo os "heróis" são os mesmos de 1974. Bem o mal, o Brasil de hoje está mais próximo do conformismo asséptico do período do "milagre brasileiro" do que da verdadeira vontade de rever os valores e conceitos que havia entre 1958 e 1963.
Está claro que muita gente torce o nariz para o senso crítico. Até nossa literatura é mais uma fuga do que uma busca ao Conhecimento. Os homens não podem ficar em casa nos sábados à noite porque agora isso é socialmente decadente, a regra é sair para a noitada sem dinheiro para o ingresso numa boate, e sem o dinheiro de volta para o ônibus que não circula às três da madrugada. Ou seja, o suposto "InCel" tem que optar entre ser um "terrorista caseiro" ou perder a vida no terror das noites sem lei.
Isso é o quê? Campanha da fraternidade? Nada disso, são os entulhos do Brasil do AI-5 que resistem há mais de 50 anos. Se o pessoal não lê textos críticos deste blogue, é porque o pessoal não quer se olhar no espelho. Tanta gente defendeu a queda de Dilma Rousseff e hoje, traumatizada com o desastre da Operação Lava Jato, agora aplaude até quando Lula fala palavrão. Não se pode criticar, não se pode exercer o senso crítico.
Um ISEB que, humildemente, surgiu no governo de Juscelino Kubitschek para debater os rumos do país, hoje é visto como "ideológico demais". Em compensação, temos genéricos do antigo Comando de Caça aos Comunistas através dos "tribunais de Internet" que, agora, tendem a voltar ao triênio 2005-2007, quando havia os "marx-cartistas", falsos esquerdistas que, apenas por formalidade, apoiam o esquerdismo mas, se pesquisarmos bem, defendem ideias e métodos de humilhar discordantes típicos da chamada "direita alternativa" (alt-right), a mesma que no Brasil fez Bolsonaro ser eleito.
Por isso temos que deixar esse raciocínio algorítmico da narrativa binária. O Brasil está culturalmente deteriorado e isso vem antes de Jair Bolsonaro. A breguice, o obscurantismo da fé e o fanatismo futebolístico, incluindo um apreço totalitário e tirânico ao hedonismo que sucumbe a surtos de solteirofobia e a humilhações contra quem não curte futebol, não frequenta boates nem bebe álcool, são só alguns dos resíduos que remetem aos "anos de chumbo" que ainda não terminaram totalmente.
Ver que a regra dominante de hoje é apenas evitar o raivismo - o que, numa perspectiva algorítmica, significa combater o senso crítico e a rebeldia, o que eliminaria boa parte do elenco esquerdista do passado (não sobraria sequer Leonel Brizola nem mesmo o Karl Marx para o apreço dos esquerdistas de hoje) - , encarando tudo com alegria resignada, conformista, mas supostamente esperançosa, crente que um idoso doente a comandar o país irá levar nossa nação para o Primeiro Mundo.
Como chegaremos ao Primeiro Mundo com um quadro socialmente deteriorado, do qual não se pode questionar nem combater? Usar o cérebro traz risco de ser cancelado, preferir a paz da vida caseira, tomando achocolatado e comendo biscoitos, traz risco de receber chacotas.
O que é isso? Nada senão os resíduos do AI-5 que, agora, conseguem fazer, sob Lula, o que não se fez sob Médici e Geisel: anestesiar a população e dar preferência ao conformismo, à obsessão pela alegria em estar de acordo com tudo. Deixemos tudo para lá e vamos para a festa. Afinal, o "milagre econômico" aparece repaginado, mas com muita breguice, obscurantismo religioso sem raiva e fanatismo futebolístico. E hedonismo para sexo, drogas e popularesco.
Dessa forma, somos aconselhados a pendurar as chuteiras e aposentar nossos cérebros, com suas funções pretensamente substituídas pelo coração. Cruzemos os braços, porque Lula está em campo e vamos brincar de infância na confusa vida adulta que usa o Instagram como abrigo contra a realidade.
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