O PESSOAL NÃO QUER SENSO CRÍTICO, QUER CURTIÇÃO.
Isso parece muito estranho e faz muitos saltarem da cadeira achando que é um "absurdo". Mas isso faz muito sentido quando as pessoas com média de 45 a 60 anos de idade manifestam suas memórias afetivas do passado ou seus apreços culturais do presente.
De vez em quando vemos pessoas manifestando padrões de religiosidade, cultura musical, lazer, vida amorosa, vida social etc como se ainda estivéssemos sob o governo do general Ernesto Geisel. De que adianta a pose de modernidade, de democracia, se nas redes sociais o "estabelecido" é defendido com unhas e dentes por uma boa parcela da juventude que age de maneira autoritária e vingativa?
O Brasil está contaminado em todos os aspectos. Bregalização, obscurantismo religioso - para piorar, sob o verniz "ecumênico" e "racional" do Espiritismo brasileiro, mil vezes pior do que as já piores seitas neopentecostais - , modos de diversão e convívio humano, e até o mercado de trabalho, alternando entre exigências absurdas de experiência e carteira de motorista e os critérios "flexíveis" que dispensam o talento, priorizando mais a "desenvoltura social".
Quem foi adolescente ou jovem em 1974, época em que o Brasil, segundo a sociedade dominante, encontrou um "bom termo" de sua vida societária, viveu o "novo normal" dos valores socioculturais conservadores trazidos pela fé religiosa, pelo fanatismo do futebol, pelo darwinismo social e profissional, pela bregalização cultural.
Diferente de 1963, a geração que cresceu em 1974 aprendeu a rejeitar o senso crítico e no seu contexto social as classes dominantes buscavam um jeito para frear qualquer mobilização mental ou ativista dos brasileiros. A ideia é manter a desigualdade social dentro de padrões "equilibrados", dando a impressão de que essa desigualdade "está sendo superada", quando na verdade ela permanece apenas em níveis "suportáveis".
Dessa maneira, aquele 30% do povo brasileiro, uma classe média "elástica" que vai do pobre remediado que faz festas na laje todo fim de semana ao astro de TV com fortuna equiparada à do empresariado mas sem o poder de decisão político-econômico deste, quis manter seus privilégios e vantagens, além de atuar como pretenso formador de opinião. Não se pode questionar, contestar, protestar ou reclamar de verdade, mas criar arremedos de inconformação aceitáveis para essa burguesia flexível.
Com o poder suave (soft power), pensou-se em meios de substituir a repressão física determinada pelo AI-5 da ditadura. Um "AI SIMco" que varia entre a "autocensura" da imprensa, o sofrimento silencioso e resignado das religiões (com os "espíritas" superando, em conservadorismo, os neopentecostais mais bolsonaristas, embora evitasse o discurso raivoso destes) e o assistencialismo aos pobres, concedido principalmente pelas mencionadas religiões "não-raivosas".
Busca-se um atendimento parcial de reivindicações, por um lado, e o desenvolvimento de uma discriminação do pensamento crítico, de outro. A discriminação desse modo de pensar não é formalmente defendida, pois em tese se "aprova" o pensamento crítico, mas nas entrelinhas há um limite rigoroso de sua manifestação, de forma a promover o desprezo social àquele que "contesta demais as coisas".
Essa restrição do pensamento crítico tem como objetivo manter os privilégios sociais que a "boa" sociedade obtém para si através de inúmeros retrocessos de ordem social, cultural, política e econômica. Só se questiona quando a "boa" sociedade permite, através da mídia corporativa. O "questionamento" tem que ser feito sem ferir os estereótipos que movem nosso sistema de valores e sem comprometer os privilégios das forças sociais envolvidas.
Por isso o pensamento crítico, no Brasil, se limita oficialmente a contestar os valores que são associados ao bolsonarismo, deixando passar valores análogos mas que vestem a capa do discurso não-raivoso e da falsa solidariedade ao povo pobre, desde que o povo pobre, neste caso, seja visto sob o estereótipo domesticado dos miseráveis ingênuos das novelas, humorísticos ou mesmo do imaginário religioso.
Por outro lado, a restrição ao pensamento crítico tem também como finalidade não comprometer o sistema de clientelismo de ordem cultural, política, acadêmica, empresarial e financeira. Imagine desenvover uma tese de Mestrado como se faz na Europa. Imagine um Jean Baudrillard ou Guy Debord contestar a "sociedade do espetáculo" no Brasil. Impossível. Isso comprometeria um mercado que movimenta milhões de reais através da imbecilização cultural aceita sob o pretexto do "fim dos preconceitos".
Por isso, vemos o quanto o AI-5 e o DOI-CODI desapareceram, dando lugar a métodos socialmente aceitáveis de coerção do pensamento crítico, da rebeldia, da inconformação. Métodos que envolvem toda uma manobra psicológica que transforma essas atitudes de agir contra o sistema de valores em algo "socialmente decadente", afastando a adesão que antes era fácil e ampla a essas manifestações do inconformismo.
E como o Brasil vive desenvolvendo estereótipos, que estabelecem uma supremacia e até um monopólio sobre as narrativas mais realistas, criando um consenso mais próximo dos contos de fadas do que da realidade nua e crua, o inconformismo acabou ganhando o desenho equivocado da fúria bolsonarista, e daí para Renato Russo e Roger Moreira serem vistos como se fosse a mesma coisa é um pulo. Um pulo equivocado e bastante perigoso.
Hoje temos uma sociedade mais conformada do que a dos tempos da ditadura. O que mais assusta é que ela se conforma com gosto, fazendo com que os propósitos do AI-5 fossem conquistados e realizados sem que houvesse um único tiro, uma única prisão, uma única tortura, bastando apenas, em casos extremos, apelar para o "tribunal da Internet", eufemismo para o valentonismo (bullying) de um grupo de internautas, mas liderados por algum sociopata, com o objetivo de ofender e derrubar a reputação de quem discorda de algum valor ou ideia da moda.
E tudo isso foi possível porque a ordem social que, em 1964, lutou contra João Goulart, se ascendendo ao poder consolidado dez anos depois, tentou se adaptar a contextos de democracia a ponto de hoje, de maneira surreal, serem a nata de apoiadores de Lula.
Desse modo, assim que o projeto progressista de Jango pôde ser diluído e amenizado por Lula em seus três mandatos, mas de maneira mais radical e definitiva no atual mandato, a repressão ditatorial tornou-se desnecessária, pois aquela mobilização que havia entre os opositores do regime ditatorial contra os retrocessos sociais e culturais da época (que construíram, em 1974, o "novo normal" que tenta sobreviver a todo custo hoje em dia), agora, pode ser reprimida por uma simples questão do chamado "cancelamento social".
O "poder suave" fez o que Sérgio Fleury e Brilhante Ustra não conseguiram fazer com os inconformados e plantão. E isso, pasmem, sob a marquise da "liberdade democrática".
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