Aos poucos a geração dos jovens e dos jovens adultos e dos adultos jovens de 1968 vai embora. Dos mais famosos, perdemos, de uma só tacada, nos últimos dois anos, Erasmo Carlos, Leno, Gal Costa, Rita Lee, só para citar a música, mas também, no meio do caminho, outros nomes da cultura e do ativismo ao longo dos tempos.
Hoje foi divulgada a morte do ator, dramaturgo e diretor teatral José Celso Martinez Correa, líder e fundador do Teatro Oficina, que introduziu a prática do "teatro vivo", inspirado pelo Living Theatre de Nova York. No "teatro vivo", os atores interagiam com o público, "convidado", mesmo a contragosto, a participar do espetáculo teatral. A própria vinda do Living Theatre ao Brasil, em 1971, foi patrocinada por Zé Celso e outro ator do grupo, Renato Borghi.
Zé Celso também fazia um teatro muito crítico e polêmico, causando problemas já na ditadura militar, com a peça O Rei da Vela, encenada em 1967 e baseada na obra do modernista Oswald de Andrade (o mesmo da teoria do Antropofagismo Cultural).
O dado importante de O Rei da Vela é que ela era uma das produções teatrais mais importantes do triênio 1966-1968, um período marcado por intensos protestos contra a ditadura militar, desde as primeiras reações os estudantes contra o acordo MEC-USAID de 1966, até o discurso de Márcio Moreira Alves na Câmara dos Deputados, em 1968.
No contexto da Contracultura, o Brasil vivia um momento problemático. A ditadura militar, nesta fase pré-AI-5, embora já reprimisse violentamente quem se opusesse ao regime, se autoproclamava uma "democracia". Por isso os protestos encontravam no Brasil uma situação mais dramática do que se via na Europa e EUA.
Não acompanhei o trabalho de Zé Celso, confesso, mas reconheço a coragem dele em fazer críticas politicas, sociais e religiosas dentro do espírito de 1968, em que as causas identitárias até existiam, mas elas tinham a inocência, a consistência e a coragem que se perdeu quando o neoliberalismo se apropriou destes movimentos a partir dos anos 1970, criando as bases para o "neoliberalismo progressista" que reduziu os movimentos identitários da antiga Nação Woodstock a um hedonismo infantil mais próximo do Xou da Xuxa do que da Contracultura sessentista.
Criticando a burguesia e o capitalismo em peças como Pequenos Burgueses, de 1963, e mostrando pessoas nuas na montagem de Os Sertões, de 2007, baseada na obra de Euclides da Cunha e desafiando dogmas religiosos na peça Santidade, naquele mesmo ano, Zé Celso também tinha uma batalha ambiental em andamento, se mobilizando praticamente sozinho para banir a construção de um empreendimento imobiliário no entorno do Teatro Oficina, onde fica um parque, no Bixiga, aqui em São Paulo.
Também presente no cinema brasileiro, Zé Celso se destacou em filmes como Encarnação do Demônio, dirigido por José Mojica Marins, o Zé do Caixão, em 2007 - aliás, um antigo filme inacabado e considerado perdido de Zé do Caixão, A Praga, filmado em 2007, foi recentemente finalizado pela Heco Produções e recentemente lançado nos cinemas - , e Fedro, de 2021, último filme com o diretor teatral que, neste longa, fez o papel do filósofo Sócrates. Avesso às novelas, Zé Celso participou de apenas uma produção do gênero, a novela Cordel Encantado, da Rede Globo, em 2001.
Zé Celso estava feliz, oficializando seu casamento de 37 anos com Marcelo Drummond, mas, provavelmente por causa de um aquecedor - utensílio considerado muito perigoso - , o apartamento do casal em Paraíso, também na cidade de São Paulo, sofreu um incêndio. O Paraíso virou um inferno e os dois saíram feridos, mas Zé Celso sofreu queimaduras em mais da metade do seu corpo e, em estado grave, faleceu aos 86 anos de idade.
A morte de Zé Celso, ícone da Geração 68, ocorre num contexto muito estranho do Brasil de hoje, quando Lula, mesmo associado a um projeto progressista (embora bem mais brando do que nos dois mandatos anteriores, já muitíssimo moderados), desestimula os protestos e o senso crítico, criando o contraste surreal entre a falsa democracia dos primórdios da ditadura, que permitiu espaços de pensamento e expressão crítica, e a verdadeira democracia que pede para que fiquemos calados para que a louca viagem do Brasil precarizado o leve a fazer parte, em tese, das potências do Primeiro Mundo.
Por enquanto, nomes como Zé Celso, Rita Lee e Elis Regina - "ressuscitada" por um comercial da Volkswagen por meio da Inteligência Artificial - são apreciados pelas esquerdas cirandeiras por uma simples formalidade protocolar, pois essas esquerdas preferem cultuar ícones da direita cultural que supostamente estão associados à alegria do povo pobre. Até que ponto eles serão respeitados pelas esquerdas médias, não se sabe, mas o luto os mantém em situação confortável.
Em todo caso, todavia, Zé Celso morreu num contexto em que, por ironia, o Brasil culturalmente precarizado da Era Geisel, com a burguesia de classe média ditando as rédeas ao defender bregalização cultural, mercado de trabalho asséptico e obscurantismo religioso assistencialista, luta para viver. O país do "milagre brasileiro" tenta sobreviver repaginado sob a batuta do presidente Lula, defendendo um culturalismo cafona com o qual os falecidos mestres culturais conviveram sem se misturarem a ele, salvo raras exceções.
Zé Celso nos deixa quando o Brasil vive o insano conflito interno entre a libertinagem vazia de sentido e de razão e o obscurantismo religioso e seu assistencialismo vazio em verdadeira caridade, criando nas mentes do Brasil-Instagram da elite do bom atraso um indigesto combo que alterna o sexo troglodita dos funqueiros com as pregações medievais de "madres" e "médiuns" festejados por quase nada ajudar de verdade para combater a pobreza. Até porque pobreza, segundo o Brasil de hoje, deixou de ser um problema para ser um estilo de vida, não é mesmo?
Fica aqui nossa gratidão a Zé Celso pelo que ele buscou realizar, em sua vida, pelo Brasil.
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