Um texto publicado no Jornal GGN segue o espírito do tempo desse "socialismo de resultados" que faz com que uma elite supostamente esclarecida estabeleça seu protagonismo, uma pequena burguesia brasileira que se acha "a humanidade" e quer mandar até no planeta.
Intitulado "Caso Pochmann: o 'cosmopolitismo periférico' dos liberais brasieiros", de Christian Lynch, o artigo é motivado pela polêmica em torno da indicação do economista Márcio Pochmann para a presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), acusada de ser um jogo político do governo Lula. Eu, pessoalmente, apoio Pochmann para o cargo pois sinto que ele fará um desempenho técnico.
Lynch mistura os conceitos econômico e cultural do "liberal brasileiro" que sofre do "cosmopolitismo periférico", um estereótipo que faz até sentido se apenas nos referirmos os empresários e banqueiros economicamente gananciosos, politicamente ambiciosos mas culturalmente pedantes.
Mas da forma como Lynch escreve, o "cosmopolita periférico" parece um "InCel" da política, alinhado com a supremacia do Atlântico Norte, com todo o seu ideal anglófono e sua pretensa superioridade sociocutural.
Com a conquista do protagonismo, setores das esquerdas lulistas, se achando detentores da razão, passaram a criticar certos redutos de inteligência e sensibilidade socioculturais, atribuindo a elas uma associação forçada com o neoliberalismo ou com o bolsonarismo, a ponto de certas correntes do esquerdismo identitário, ao investirem no estereótipo do InCel, o "celibatário involuntário", são capazes de tratar o Minduim dos quadrinhos e o Jason dos filmes de terror como se fossem a mesma pessoa.
O referido texto parece mais um ressentimento às avessas, um ressentimento de quem venceu hoje e quer apedrejar os vencedores de tempos anteriores. Dotados de um complexo de superioridade pelo protagonismo pleno que só agora conquistaram, os lulistas em geral não admitem críticas e chegam mesmo a não só cometer exageros, mas a investir em fantasias delirantes.
Chegou-se a dizer que Lula "fez 60 anos em seis meses" ou "fez em seis meses mais do que fez em todo o ano de 2003". Mas tudo o que Lula fez até agora são mornas realizações de âmbito socioeconômico e muita movimentação factual, ou seja, Lula produziu mais notícias do que progressos para o Brasil. Lula priorizou os fatos políticos, incluindo uma desnecessária ostentação fora do nosso país.
O que temos é um grupo social que tomou o poder, comandado por lulistas e apoiado por "isentos" ideológicos e bolsonaristas arrependidos. Não é "o povo brasileiro", apenas é um recorte privilegiado do povo do Brasil. Esse grupo corresponde a uma classe média que se acha "dona de tudo" e, na empolgação, decide apedrejar não só o bolsonarismo mas também o Brasil de Juscelino Kubitschek e de João Goulart, cujo projeto político foi podado por Lula até se reduzir a uma pálida sombra, mesmo a do primeiro mandato do petista.
Pois ao "cosmopolitismo periférico" do neoliberalismo econômico e da "vergonha de ser brasileiro", valorizando apenas os valores associados ao Atlântico Norte, como se a OTAN fosse o Vaticano dessa aparente religião socioeconômica, se contrapõe o "bom" culturalismo, de um lulismo mais cor-de-rosa do que a estética da Barbie, com a bandeira do PT tornada rosa não por um capricho identitarista, mas porque o rosa é a cor dos tecidos vermelhos quando se desbotam.
Esse "bom" culturalismo é o "viralatismo globalitário", um viralatismo enrustido porque reivindica pedigree, se acha "nobre" no seu coitadismo e pretende transformar a sua mediocridade não-assumida em algo "genial".
O texto de Lynch sinaliza esse universo. Enquanto ele reclama do "liberal brasileiro" que fala de um Brasil problemático, porque o articulista engrossa o coro dos lulistas de que agora "tudo está bem" e só é preciso remover os entulhos bolsonaristas, dos vândalos do Oito de Janeiro aos assassinos e Marielle Franco e Anderson Gomes, passando pela própria família Bolsonaro, por outro lado se vê um Brasil estranho, que quer ser "genial" em esforço, como o aluno ignorante que esculhamba o professor.
Pois o "viralatismo globalitário" coloca o Brasil que ainda nem começou a ser reconstruído como uma "nação superior". Uma nação que, sob Lula, discrimina mais o debate e o pensamento crítico do que nos tempos do general Castelo Branco. Só aceita um "debate" em que se critica menos, quando, em vez de tocar o dedo na ferida, se passa um pano por cima.
Temos uma precarização cultural que se intensificou durante o auge da ditadura militar, se consolidou durante os governos conservadores de José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso e se efetivou durante a sabotagem cultural dos intelectuais herdeiros do tucanato acadêmico - por sua vez herdeiro da tecnocracia do IPES-IBAD - , que consagraram a supremacia da bregalização sob o rótulo de "combate ao preconceito".
Neste sentido, lembremos que Lynch deu uma pequena espinafrada na Bossa Nova, acusada de ser expressão do entreguismo cultural do "liberal brasileiro anglófono". Por outro lado, os lulistas exaltam o "funk", cuja narrativa dominante - e, lembremos, não só corroborada mas originária de narrativas "socializantes" da Globo e da Folha - supõe que o estilo "nasceu no Quilombo de Palmares", mas se esquecem que sua fonte é o Miami Bass, nascido na Flórida anti-castrista, o que diz muito a respeito do DNA anti-esquerda do "funk", que posa de "esquerda" em troca de verbas estatais de Lula.
Esquece Lynch que a Bossa Nova valorizava o Brasil, e culturalmente se fundamentou na Antropofagia Cultural de Oswald de Andrade, o que é muito diferente dos estilos popularescos. Na Antropofagia Cultural, a assimilação de influências estrangeiras é horizontal, fruto da vontade própria do ouvinte e aspirante a artista. Já a cultura brega-popularesca, na qual se insere o "funk", não há Antropofagia, pois a assimilação de elementos estrangeiros é vertical, trazida pela mídia corporativa, ou seja, vem da vontade prioritária do emissor e não do receptor da mensagem.
Temos um esquerdismo muito estranho, que prefere os "brinquedos culturais" da direita que se consagraram na ditadura militar, como "médiuns espíritas", ídolos bregas ("ancestrais" dos funqueiros, piseiros, axezeiros, arrocheiros etc), mulheres-objetos (como as mulheres-frutas e a "diva" Geisy Arruda) e craques milionários de futebol, esporte irremediavelmente contaminado pela emotividade tóxica que vai além da fúria de torcidas organizadas, se tornando "moeda social" principalmente no Rio de Janeiro, onde a simples opção de não curtir futebol traz risco de ate perder o emprego e os amigos.
Nesse estranho esquerdismo do lulismo 3.0, fenômenos progressistas como o Pasquim, a obra de Stanislaw Ponte Preta, a poesia de Renato Russo e de Cazuza, a Antropofagia Cultural da Bossa Nova, os debates do ISEB e do CPC da UNE são alvos de repúdio. Por enquanto, Leonel Brizola, Rita Lee, Elis Regina, Belchior, Milton Santos e Paulo Freire, além de um MST cooptado por Geraldo Alckmin (à maneira do antigo MR-8, pelo finado Orestes Quércia) são "admirados" pelos lulistas, mais por uma formalidade protocolar do prestígio momentâneo do que pela identificação a eles, alguns "radicais" para o contexto atual.
Em compensação, a precarização cultural da música popularesca e da deterioração social de que faz parte é exaltada pelos lulistas como se fosse "a expressão máxima o povo das periferias". Agora esse Brasil que era um problema estudado pelos mais renomados intelectuais de 60 anos atrás (seriam eles também "cosmopolitas periféricos"?), hoje é o "modelo superior" de uma nação prestes a "se tornar Primeiro Mundo" por ter como patrimônio maior a "alegria do povo brasileiro".
Em outras palavras, pobreza agora é "identidade", "etnia" e "modelo de vida", e favelas são agora "arquitetura pós-moderna", e a precarização sociocultural o "nosso maior tesouro". Lynch não gostou da ideia, que ele atribui ao "cosmopolita periférico" (com o termo "periférico" visto aqui de maneira negativa, diferente da carga positiva do termo "periferia" do imaginário lulista atual), de que o Brasil vive em situação de atraso, mas a verdade é que esse atraso existe e não é o brasiliófobo que quer assim.
Pelo contrário. Já se discutiu o atraso brasileiro há 60 anos, com debates sérios que, no contexto das conveniências sociais, políticas e econômicas que movem o lulismo hoje, soam "ideológicas demais". A ideia agora é passar pano na precarização cultural, mesmo quela que se ascendeu sob os governos dos generais Médici e Geisel, e promover um relativo desenvolvimento socioeconômico dentro dos limites pensados por FHC, cuja Teoria da Dependência hoje movimenta a chamada "cultura das periferias".
Essa precarização sociocultural já é um problema pra nosso país - a "campanha contra o preconceito" dos intelectuais pró-brega só conseguiu abrir caminho para o golpe de 2016 - , e se torna um problema cada vez pior quando hoje deseja dominar o mundo, com um lulismo dotado de profundo complexo de superioridade (que lhe dá direito a demonizar o senso crítico, quando ele ultrapassa os limites aceitos pela "objetividade" lulista) que agora quer se colocar como o "modelo de civilização" a ser adotado pelas demais nações do planeta.
Ou seja, temos que aceitar a ideia, só para citar um exemplo, de que um cenário recente como o do trap - surgido nos EUA mas, no Brasil, "livremente" desenvolvido da fusão do rap da linha Projota com o "funk ostentação" - , com sua precária batida de lata de ervilha, é superior do que a riquíssima Bossa Nova de músicos admiráveis, altamente criativos. Quer dizer que MC Poze é "melhor" do que o recém-falecido João Donato?
O "viralatismo globalitário" consiste, então, em não apenas fazer a precarização e a mediocridade culturais prevalecer em todo o território brasileiro, mas também impor sua supremacia para o resto do mundo, sob o pretexto de uma "superioridade ilustrada" de umas poucas elites de tecnocratas que apoiam o governo Lula.
Trata-se de um processo muito perigoso, pois um país culturalmente deteriorado - lembremos que a bregalização sempre esteve a serviço do entreguismo e do coronelismo que escraviza o povo pobre rural e suburbano - não pode se impor ao mundo.
O aparente triunfalismo do governo Lula ilude os brasileiros e faz com que uma elite de abastados se acha dona do pedaço a ponto de desqualificar o outro que vê a vida muito além dos filtros dos "pobres de novela" que querem ver "funk" no Festival do Futuro ou da classe média festiva que trata É O Tchan, Michael Sullivan e Xuxa Meneghel como "vanguardas musicais".
Ou seja, quem quer cultura de qualidade, valores sociais edificantes, quem quer pensar, sentir, se emocionar, ter senso crítico, ficar em casa etc não pode ser xingado de "cosmopolita periférico", "InCel" e outros rótulos feitos para depreciar os que não acham que Lula é o "centro do universo". As esquerdas têm que parar de acreditar que tudo que não é Lula é Bolsonaro, antes que entrem em surto de demência coletiva.
Pior do que o "cosmopolita periférico" que pensa o Brasil como um quintal da OTAN, é o "viralatista globalitário" por trás da "burguesia esclarecida" que são os intelectuais orgânicos do Brasil sob Lula 3.0. Em vez dessa burguesia querer impor a precarização sociocultural como se fosse modelo de desenvolvimento, deveria ficar em casa, sair do pedestal e não querer que seus interesses privados pareçam "públicos e universais".
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