A onda do brega-vintage cria situações surreais, pois, ao mesmo tempo em que se repudia o bolsonarismo e toda sua simbologia, valores culturais próprios do "milagre brasileiro" e seus derivados de décadas posteriores são exaltados como se fossem relíquias nostálgicas, como se fossem preciosidades dignas de saudade e lembranças revividas. Só que não.
Vemos que, ultimamente, o que é considerado "cult" no Brasil corresponde ao brega de raiz dos anos 1970, ao popularesco gurmê dos anos 1980 - tipo Xuxa, Sullivan & Massadas e o pior do Ploc 80 - e o supremacista brega-popularesco dos anos 1990. E isso é um horror, porque a atribuição de pretenso cult ou pretensa vanguarda são um golpe de marketing tramado por um consórcio midiático que envolve Globo, SBT, Folha de São Paulo e outras corporações que decidem o que é "liberdade humana" no nosso país.
São coisas que seriam dignas de um FEBEAPÁ, se Sérgio Porto, cujo codinome era Stanislaw Ponte Preta, se ele estivesse vivo e não corresse o risco de ser cancelado pelas redes sociais e por um senso comum ultimamente ressentido com pessoas realmente intelectualizadas, sensíveis e humanas. Se o internauta médio do Instagram não consegue ser um Tom Jobim, um Raul Seixas ou um Glauber Rocha, ele parte para atirar pedras nos grandes mestres, mortos ou vivos.
A onda é gourmetizar a mediocridade. Mas de uma forma tão estranha que hoje as maiores "músicas de protesto" do Brasil são o resignado "Rap da Felicidade", de MC Cidinho e MC Doca, o bobinho "Xibom Bom Bom", de As Meninas e, acredite, "Ilariê" de Xuxa, hoje promovida, pasmem, a uma "Joan Baez" da "Contracultura de resultados" que vive a juventude identitarista no Brasil.
É essa ala "moderninha" da elite do bom atraso que tem em Michael Sullivan o "seu Tom Jobim". E o pior é que Sullivan, espécie de Roberto Campos Neto da música brasileira - lembrando que a medida de usar matéria prima importada e obsoleta de Roberto Campos, o avô, para mover nossa economia, inspirou os bregas a usar modismos ultrapassados para a base de seus sucessos contemporâneos - , vende a falsa imagem de "vanguarda" para um público brasileiro cujo beatle favorito é o "lado".
Achar que Michael Sullivan virou "alternativo" e "indie" é um acinte à inteligência humana, assim como não dá para considerar "Ilariê" a nossa "Blowin' In the Wind". Mas, paciência, aqui o É O Tchan é tratado como se fosse o "nosso Velvet Underground" quando é notório o contraste entre o mau humor cínico da banda novaiorquina e a alegria tóxica da banda baiana. Nas fotos, Lou Reed e companhia apareciam fazendo caras de poucos amigos. Já o grupo de Compadre Washington sempre aparece com os sorrisos maiores que as bocas.
Não, não dá para comparar "All Tomorrow's Parties" com "Dança da Cordinha", ou versos como o lamento poético de Reed "Heroin / It's my life / It's my wife" (Heroína / É minha vida / É minha esposa") com tolices como "Pega no bumbum / Pega no compasso".
Mas é o contexto da idiotização cultural que temos, e cujo reconhecimento não pode se limitar ao bolsonarismo e seu humorismo involuntário. Considerar que o culturalismo do "milagre brasileiro" como algo superior e valioso em detrimento do culturalismo bolso-lavajatista dos últimos anos é como trocar o seis por meia-dúzia.
O culturalismo mais antigo, que envolve música brega e toda uma linhagem de fenômenos popularescos, que envolve o obscurantismo religioso e o fanatismo pelo futebol, e todo um viralatismo cultural enrustido que se observa pelo modo um tanto bobo de tratar e selecionar os assuntos nas redes sociais.
De que adianta vociferar contra neopentecostais e atribuir somente a eles a semente do mal se exalta o Espiritismo brasileiro, que na embalagem é aquele mundo de cor e fantasia mas, no conteúdo, é o pesadelo de provações violentas e intermináveis. Esquecem que o Espiritismo brasileiro esteve ao lado dos neopentecostais entre as religiões patrocinadas pela ditadura militar para enfraquecer o Catolicismo, então dedicado, através da Teologia da Libertação, a combater o regime ditatorial.
O que faz com que o viralatismo cultural de ontem, seja os anos 1970, sejam as duas décadas posteriores, ser tão defendido e apoiado? Por causa de alguma memória afetiva e solipsista de seus apoiadores? Porque as famílias promoviam seus passeios com seus Opalas, Fuscas e Chevettes, Brasílias e Rurais, Passats, Monzas e Escorts, cujos motorrádios tocavam os sucessos da música cafona ou do popularesco "moderno" do passado?
Ou então, além da lembrança do tiozão de hoje de ter passeado para a praia ao som de Waldick Soriano e Odair José com sua saudosa mãezinha, seu inesquecível pai e os irmãos tão velhos quanto o tiozão de hoje, ainda tem aquela leitura do livro "mediúnico", a psicografake creditada a um morto da moda que promete a paz mundial através de uma multidão calada e submissa? E aquele futebol tóxico que procura, em vão, repetir o glamour novidadeiro das vitórias da Seleção Brasileira em 1958 e 1962 e dos jogos estaduais até 1987?
Será que o saudosismo justifica considerar a mediocridade do passado como "genial"? Esquecemos que os "Farofafá" e "Bilu Teteia" da vida eram a "caneta azul" dos anos 1970. Os brasileiros se acostumaram com o "novo normal" do culturalismo vira-lata enrustido do passado, com "médiuns", ídolos cafonas, craques de futebol milionários e alegremente aburguesados, com o "mundo cão" e a "sociedade do espetáculo" aparecendo na TV aberta, que isso se torna um sentimento muito perigoso nos tempos de hoje.
Se democracia é manter todo esse entulho cultural que simbolizava a decadência cultural em cenários como os governos ditatoriais de Médici e Geisel e os governos de Sarney, Collor e FHC, mantidos através da sabotagem cultural dos dois governos Lula, isso pode ser, a princípio, admissível, mas bastante perigoso, pois o que se acolhe hoje como "relíquias culturais" é o que havia de decadente há 50 anos, mas que se tornou "genial" apenas porque está associado às lembranças da infância e da juventude de muitos brasileiros.
O maior perigo é saber o que será "democrático" ou "de esquerda" para os futuros netos, se não agirmos para banir esse "bom" culturalismo do "milagre brasileiro". Silas Malafaia e Valdomiro Santiago virarão gurus guevarianos? O machismo de Bruno, da dupla com Marrone, será um novo feminismo praticado por homens? O MC Créu será considerado mais genial que Chico Science? As esquerdas futuras vão se mobilizar para transformar Olavo de Carvalho em santo?
Temos que parar com esse brega-vintage e a gourmetização da mediocrização, do obscurantismo religioso, do fanatismo esportivo e de outras emoções tóxicas que, só por não possuírem a raiva bolsonarista, não significa que sejam válidas como valores edificantes e preciosos.
Pouco importa se o adulto de hoje sente saudade da infância em que seus pais o levavam para a praia com o carrão popular da época tocando, no rádio, aquele patético sucesso musical brega-popularesco. Assim como pouco importa choramingar ao ler aquela mensagem do "médium" pedindo para todo mundo sofrer calado e feliz, ou passar um domingo inteiro vendo a partida recente de futebol na esperança de repetir aquela emoção já extinta em algum momento de 1962.
Chega de tratar solipsismo como lição de vida. É por causa desse culturalismo vira-lata enrustido que o Brasil se encontra numa situação extremamente decadente culturalmente e socialmente deteriorada. Rompendo com esse "bom" entulho, o Brasil ainda não irá para o Primeiro Mundo, mas pelo menos, jogando fora todo o culturalismo mofado de 50 anos atrás - ou de 30, 40 anos em outros casos - , nosso país deixará de fazer papel de ridículo diante do resto do mundo.
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