A MPB autêntica vê seus mestres falecendo um a um e o que nos resta é apenas uma inócua MPB pós-tropicalista que reduz sua qualidade a cada geração de nomes que conseguem obter visibilidade. Existe boa MPB sendo produzida, mas os verdadeiros novos artistas, no entanto, têm dificuldade para se projetarem além da sua bolha cultural e o gosto médio dos brasileiros se deteriora cada vez mais.
A situação é digna de fazer careca arrancar os cabelos que não tem e de um mudo sair correndo em pânico pelas ruas com vontade de berrar, de tão catastrófica que está. Sim, vivemos uma catástrofe cultural e o fato de ninguém perceber, achando que tudo está bem e às mil maravilhas, é sinal de que a coisa está muito pior do que se pode imaginar. E é bom lembrar aos desavisados que este blogue não virou bolsonarista, com este alerta tão distópico no contexto do lulismo no poder.
Nas últimas semanas, só a Bossa Nova perdeu quatro grandes nomes: Astrud Gilberto, João Donato, Leny Andrade e Dóris Monteiro. Todos já idosos. E todos, pela influência do jazz, "acompanhando" o gigante Tony Bennett, que também nos deixou.
O fato deles falecerem não é problema em si, devido à idade avançada, mas eles morrem duas vezes, porque a Bossa Nova hoje está sendo hostilizada pela arrogante juventude pró-brega, e Tom Jobim e João Gilberto apanham, postumamente, mais do que o bolonarista Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, apanha nas redes sociais.
Isso é gravíssimo, se considerarmos que o culturalismo do "milagre brasileiro", com seus bregas, seus "médiuns", suas "boazudas", seus artilheiros do futebol dirigindo carros importados, seu viralatismo nunca assumido inspirado nas novelas do horário nobre, tenta sobreviver a todo custo através do apoio tendencioso ao projeto progressista de Lula que, de tanta pressão dessas elites do bom atraso, acabou reduzindo para pouca coisa seu calibre político, com o petista hoje rebaixado a um remix de José Sarney e FHC com leves pinceladas de assistência social.
A intelectualidade pró-brega sabotou o projeto progressista de Lula em 2003, quando ele, em propostas econômicas e sociopolíticas, ainda lembrava o projeto abortado que João Goulart propôs em 1964. Com o primeiro governo Lula, porém, foram desqualificados os antigos debates culturais do período janguista, trazidos pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE), tidos erroneamente como "ideológicos demais".
Através da "santíssima trindade" de Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna, apoiados por uma "comitiva" de intelectuais que incluíram a porralouquice de Milton Moura, a arrogância grotesca de Eugênio Raggi e o vitimismo de Rodrigo Faour, entre tantos outros "coitados" da "campanha contra o preconceito", os debates culturais foram sabotados com o objetivo, mediante interesses comerciais estratégicos (envolvendo Globo, Folha, multinacionais e até o magnata Jorge Paulo Lemann), de consolidar e ampliar o culturalismo brega do período da ditadura militar.
Com isso, em vez de recuperarmos a cultura popular autêntica e respeitarmos o esforço da MPB autêntica, mesmo de classe média, em manter as tradições culturais brasileiras e estabelecer um diálogo equilibrado e inteligente com a modernidade estrangeira, prolongamos a supremacia brega-popularesca patrocinada pela ditadura militar e por governos direitistas como os de José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso.
Foi um papelão as chamadas esquerdas médias - repaginação pós-2002 das esquerdas festivas da Era Médici e da Era Geisel - "esquerdizarem" Waldick Soriano e até um conhecido "médium espírita" de Uberaba (iniciais são as consoantes da palavra "caixa") por conta de uma hipotética associação ao povo pobre, embora os dois tivessem sido tão ou mais reacionários do que a linda atriz de sucesso dos anos 1970, Regina Duarte, está sendo nos últimos vinte anos.
Ou seja, ver que as esquerdas médias, só para defender os mesmos valores culturais do auge da ditadura militar, transformando-as nos seus "brinquedos culturais", recorreu ao pensamento desejoso que, no lado bolsonarista, produz suas fake news, é preocupante e altamente vergonhoso.
E hoje, no plano cultural em geral, vemos problemas em nomes como Glauber Rocha, Paulo Freire e Stanislaw Ponte Preta, e, de certo modo, nas atitudes comportamentais de Belchior, Chico Science e Renato Russo, todos alternando entre contextos de cancelamento social severo e outros de um mero apoio formal e cerimonial, como o que Rita Lee anda tendo desde que ela faleceu, meses atrás.
De vez em quando, até o lulista mais apaixonado entra em um surto análogo ao de um bolsonarista e passa a desenhar o mundo não-raivoso da direita dita civilizada com seu pensamento desejoso, como se apropriasse desse mundo encantado de pobres obedientes e de uma classe média imponente, com valores conservadores supostamente não-agressivos.
Vendo as perdas recentes de nossos bossanovistas, as fantásticas cantoras Leny Andrade, com um pé no jazz, e Dóris Monteiro, com um pé no sambalanço, além da vibrante criatividade do multiinstrumentista João Donato e da suavidade internacional de Astrud Gilberto, vemos o quanto aquele gênero que foi "inaugurado" por um aviso num quadro negro do Colégio da Sociedade Hebraica Brasileira, no Rio de Janeiro, em 1957, que falava de um "concerto de samba sessions de um pessoal bossa nova", vê suas lições serem apagadas completamente.
Afinal, Bossa Nova não é apenas cantar baixinho, vestir roupa chique, sentar-se no banquinho e tocar um violão um leve samba romântico qualquer nota. Não. Bossa Nova foi um estado de espírito que durou, de forma intensa, entre 1956 e 1964, pois o movimento foi mais do que um estilo musical, foi um modo de vida, um modo de convívio social e uma cultura marcada pela esperança e por uma criatividade ímpares.
A cosmopolita e culturalmente antropofágica Bossa Nova ganhou o mundo porque era o Brasil de cabeça erguida. Era o símbolo de um Brasil que, ao mesmo tempo, procurava conhecer a si mesmo e a se abrir para o mundo, naqueles anos de Juscelino Kubitschek e João Goulart que o intervalo populista de Jânio Quadros não conseguiu interromper.
Era um Brasil diferente do que o de hoje, quando, desde 2003, a "boa" sociedade brasileira teima furiosamente em não remover os entulhos culturais dos períodos dos generais Emílio Médici e Ernesto Geisel, mas pintá-los com o verniz do frágil vermelho-guache pseudo-esquerdista.
A Bossa Nova nunca quis substituir o samba original e respeitava o povo pobre mais do que muito intelectual pró-brega de hoje, e alcançou o mundo porque tinha integridade e relevância artística, e num momento único os bossanovistas se consagraram internacionalmente, o que, no contexto atual, dá para entender a rejeição furiosa dos ressentidos de direita e de esquerda dos últimos vinte anos.
E aí os personagens do elenco bossanovista estão nos deixando um a um, e a nata da nossa MPB também envelhece e nos deixa. E isso num cenário cultural catastrófico, em que se considera canastrões musicais tipo Michael Sullivan e Chitãozinho & Xororó como "vanguarda" e Xuxa agora é nossa "cantora de protesto", com a nostalgia vintage temperada com o grotesco do É O Tchan.
Enquanto se gourmetiza a ditabranda do mau gosto, ou seja, o "mau gosto" defendido com vergonhosa choradeira vitimista de uma elite intelectual que mais parece ressentida do que de cabeça erguida, os verdadeiros valores de nossa cultura desaparecem, pela dupla morte dos seus personagens, mortos biologicamente mas muito mais mortos culturalmente, pela falta de seguidores e herdeiros à altura.
Enquanto isso, se acredita, através de ídolos cafonas, "médiuns", mulheres-objetos e craques milionários de futebol, que se tem que baixar a cabeça para o Brasil alcançar o Primeiro Mundo, como se isso fosse uma mera questão de chuvas de dinheiro. Grande engano. Pensando assim, o Brasil chegou a Jair Bolsonaro. Vamos começar tudo de novo? Pelo jeito, nunca aprendemos as lições e os ensinamentos culturais estão sendo apagados do quadro negro sem que se pudesse memorizar tais lições.
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