Com 40 anos de existência mas cheirando a mofo tóxico de mais de 100 anos, a axé-music aproveita os ventos tendenciosos do brega-vintage - a nostalgia de resultados que busca gourmetizar a mediocridade musical do passado - para se vender como algo que nunca foi, "música de protesto".
Até hoje fico abismado quando uma parcela das esquerdas tenta creditar a música "Xibom Bom Bom" como "hino marxista" - algo comparável a definir "Atirei o Pau no Gato" como hino oficial das guerrilhas guevaristas e bolivarianas - , mesmo sendo ela composta por um empresário (as cantoras de As Meninas nunca compuseram uma vírgula no repertório que cantam).
Confesso que eu tentei perguntar, para mim mesmo, se a classificação de "Xibom Bom Bom" como música "baseada" na trilogia O Capital de Karl Marx não seria uma daquelas piadas do antigo Planeta Diário (um dos embriões do Casseta & Planeta). Infelizmente, não, a tese é levada a sério, mesmo com um verso roubado de "A Cidade" de Chico Science: "O de cima sobe e o de baixo desce".
Mas a onda pegou e aí temos a polarização entre o "axé do mal", marcada pela cantora Cláudia Leitte - que, ao lado de Netinho, manifestou simpatia por Jair Bolsonaro - e o "axé do bem", voltado às causas identitárias (uma causa típica dos neoliberais dos EUA, mas que aqui é tida como "movimento de esquerda"), faz a axé-music se vender como um "movimento politizado", se apropriando até mesmo da simbologia dos movimentos negros do passado em Salvador.
Já bastou o papelão que foi a entrevista de Pedro Alexandre Sanches, o "menino de ouro" de Otávio Frias Filho, com o cineasta Chico Kertèsz - filho de outro direitista metido a esquerdão, Mário Kertèsz, o astro-rei da Rádio Metrópole, de Salvador - , que definiram, juntos, a axé-music como um movimento que "começou privado e virou estatal", uma mentira que só serve para situações como as de agora, quando a ministra da Cultura é a cantora baiana Margareth Menezes e, com isso, o Carnaval de Salvador sempre tem nas mãos generosas verbas públicas e incentivos fiscais da iniciativa privada.
Com a gourmetização da música brega-popularesca, beneficiada pelos seus mais de 30 anos de sucesso ininterrupto, o saudosismo fabricado pela mídia sob generosas passagens de pano da crítica especializada faz com que a mediocridade do passado ganhasse reputação de "genial", com direito a certos exageros, como definir o comercialismo popularesco como "não-comercial", sob o pretexto de estimular a empatia dos fãs. E isso quando até o mundo mineral sabe que a música popularesca é tão comercial quanto os desvarios neoliberais que Roberto Campos Neto herdou do célebre avô do mesmo nome.
E é constrangedor definir a axé-music como "canção de protesto", a ponto de usar como "prova" o fato de uma banda de indie rock estadunidense, Haim, ter tocado "Ilariê", sucesso da Xuxa composto por Cid Guerreiro, como se esse sucesso fosse uma hipotética resposta brasileira a "The Times They Are A-Changin'", de Bob Dylan. É ilustrativo que todo o pop comercial quer ter a reputação de Bob Dylan enquanto o próprio Dylan não gosta de ser cultuado através do próprio mito de "cantor de protesto".
Vários estilos brega-popularescos, como o "funk", o trap e a axé-music se vendem como "canção de protesto", e os ídolos cafonas do passado foram definidos como "cantores de protesto" por um Paulo César de Araújo com apetite de produzir fake news historiográficas em Eu Não Sou Cachorro Não, com direito a explorar supostas militâncias de Waldick Soriano e Odair José, este tendenciosamente apelidado de "Bob Dylan da Central".
Torna-se desonesto ver a axé-music, com sua única preocupação com o entretenimento mais consumista, como definir a alegria humana e até um ato como beijar na boca como "mercadorias", se passar por "canção de protesto" usando, de forma meramente especulativa, o pretexto de manifestações realmente engajadas, como os movimentos negros associados a inúmeros fatos históricos de âmbito nacional.
Tudo isso é uma grande farsa e definir "Xibom Bom Bom" como "música de protesto" revelam o grande retardamento cultural de um país atrasado e de uma sociedade infantilizada mas dotada de muito complexo de superioridade, algo que se torna perigoso diante das pretensões do Brasil, culturalmente precarizado, em dominar o mundo, algo que, felizmente não vai ocorrer, por uma razão muito simples: o Primeiro Mundo não vai deixar.
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