A vitória surpreendente de Fernanda Torres, que ganhou o Globo de Ouro (Golden Globe Awards) deste ano como Melhor Atriz pelo filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, é, sem dúvida alguma, a grande conquista e uma notícia feliz que o Brasil recebe em apenas cinco dias iniciados de 2025.
Fernanda venceu, na categoria, outras atrizes que aparentemente teriam mais chances de ganhar: Nicole Kidman, Angelina Jolie, Pamela Anderson (com impressionante volta por cima), Tilda Swinton e Kate Winslet. A vitória da atriz brasileira também ocorreu cerca de 25 anos após a mãe, Fernanda Montenegro, ter sido indicada, mas não vencido, a mesma categoria com Central do Brasil, também de Salles.
Fernanda Torres dedicou à mãe, que, em casa, aplaudiu a filha pela conquista do prêmio. Ambas são atrizes excepcionais, ambas de talento gigantesco e versátil, e Fernanda Torres, em particular, é capaz tanto de protagonizar uma comédia louca como Os Normais como um drama trágico como Ainda Estou Aqui. Além disso, Fernanda Torres também tem outra habilidade: é escritora e cronista.
O filme recente de Walter Salles - que não conseguiu vencer a categoria de Melhor Filme Estrangeiro, perdendo para o musical Emilia Perez - , se inspira no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, uma memória da violenta perda do pai, o deputado Rubens Paiva, enfatizando a trajetória de Eunice Paiva, mãe do escritor e viúva do político do antigo PTB paulista, capturado e assassinado pela repressão da ditadura militar.
Portanto, a obra de Salles fala de um Brasil que esquecemos e que difere muito do país festivo e polarizado de hoje.
Para começar, Rubens Paiva era um político que, no começo dos anos 1960, fazia parte do histórico Partido Trabalhista Brasileiro, que tinha como principais líderes João Goulart e Leonel Brizola. Era, portanto, um partido muito mal visto pela oposição política que articulou o golpe militar de 1964. Ao lado de Zuzu Angel e Vladimir Herzog, Rubens Paiva foi um dos principais mortos que expuseram o horror da repressão militar, com suas torturas e emboscadas.
Por sua vez, o próprio cineasta Walter Salles também tem um pano de fundo desta época. O diretor é o filho homônimo do poderoso banqueiro Walther Moreira Salles, e é irônico que um cineasta de uma obra humanista seja um homem riquíssimo, pois o diretor de Central do Brasil e Ainda Estou Aqui é também herdeiro do Itaú, banco que absorveu outras instituições financeiras que tiveram participação acionária da família Moreira Salles.
Walter Salles era criança quando o pai foi ministro da Fazenda do gabinete parlamentarista de João Goulart, comandado por Tancredo Neves. E aqui vemos o quanto o filho de Walther Moreira Salles demonstra, hoje, uma dignidade humana surpreendentemente e que se encontra ausente nos netos de Tancredo, o infame Aécio Neves, e de outro personagem da época de Jango, Roberto Campos, Roberto Campos Neto, que deixa a presidência do Banco Central.
Portanto, Walter Salles é uma honrosa e brilhante exceção entre a burguesia que hoje domina as narrativas e os benefícios no Brasil de hoje. Apesar de ser muito rico e, por tradição de família, ser um banqueiro, Walter Salles pelo menos aproveita a sua situação financeira para oferecer um filme reflexivo, de alta sensibilidade, que propõe debates sobre os problemas sociais do nosso país.
E isso foi mostrado no filme Central do Brasil, de 1999, focalizando a trajetória de Dora, uma professora aposentada que escrevia cartas para analfabetos na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Dora, depois de várias circunstâncias, passa a ajudar o menino Josué, cuja mãe recorreu à professora para escrever uma carta para o pai do garoto, que nunca viu seu genitor. Mas a mãe de Josué morre atropelada por um ônibus e o menino passa um tempo perambulando pelo local.
Walter também explorou temas arrojados da juventude, como a sua adaptação cinematográfica da obra de Jack Kerouac, On the Road (Pé na Estrada), o filme Na Estrada, de 2012, o que não deixa também de ser uma temática humanista, a respeito da utopia da liberdade humana trazida pelos escritores da geração beat dos EUA, cujos ideais inspiraram, mais tarde, a Contracultura dos anos 1960.
O cineasta também fez Diário de Motocicleta, de 2004, sempre procurando, na sua obra, mostrar "recortes" ocultos de episódios da história humana, como em Central do Brasil e Eu Ainda Estou Aqui. Em Diarios..., Walter mostrava a juventude de Ernesto Che Guevara, mostrando o lado humano do ícone da esquerda, normalmente conhecido somente como político e guerrilheiro.
Em Eu Ainda Estou Aqui, o enredo foca na luta de Eunice Paiva pedindo justiça diante do desaparecimento do marido, vítima das mesmas circunstâncias de milhares de mortos que, capturados de uma forma ou de outra, eram assassinados dentro dos porões do DOI-CODI, tendo seus corpos depois jogados em lugares que, na maioria dos casos, permanecem sem identificação até hoje.
A comemoração da vitória de Fernanda Torres e a apropriação da "sociedade do amor" à credibilidade de Eu Ainda Estou Aqui ignoram que o Brasil da positividade tóxica de hoje é um subproduto politicamente correto do golpismo de 1964-1985, que em muitos aspectos, violências e reacionarismos à parte, diferem do fascismo-pastelão de Jair Bolsonaro e companhia.
Lembremos que, dos antigos apoiadores do golpe civil-militar de 1964 e de seu endurecimento pelo AI-5 - seguido da premiação da classe média solidária aos opressores através do "milagre brasileiro" - , há alguns que se arrependeram sinceramente. Outros que não se arrependeram mas embarcaram nas ondas democrático-progressistas visando obter vantagens pessoais e outras que não se arrependeram.
Devemos nos lembrar do caso do jornalista Carlos Lacerda, um ex-esquerdista que virou golpista mas se arrependeu de verdade, mas morreu estranhamente em 1977 (desconfia-se que foi vítima da Operação Condor). Lembremos de tanta gente, mesmo anônima, que bradou pela queda de Jango, acreditou que o AI-5 ia deixar o Brasil "em ordem", mas se arrependeu envergonhada e pede desculpas sinceras.
Mas temos gente que viveu a doce vida do apoio à ditadura militar mas que, sem remorso, embarcou até no esquerdismo ou na redemocratização. Fernando Henrique Cardoso foi um dos artífices do "poder suave" (soft power) de 1974 e estabeleceu um neoliberalismo pós-AI-5 para tornar o Brasil ao mesmo tempo "prospero" e dependente. Hoje ele é um dos apoiadores da "democracia de um homem só" do presidente Lula, entregando o PSDB à supremacia de alguns delinquentes políticos.
O paranaense Jaime Lerner, espécie de "Roberto Campos da busologia e da mobilidade urbana", foi prefeito biônico da ditadura militar e viveu seus "quinze minutos de fama" posando de esquerdista e temporariamente acampado no PDT. Outro prefeito biônico, o baiano Mário Kertèsz, foi afilhado político de Antônio Carlos Magalhães mas hoje, dublê de radiojornalista, virou "amigo de infância" do presidente Lula e tenta bancar o "dono das esquerdas" de Salvador.
Lerner e Kertèsz tentaram inclusive se beneficiar da falta de memória da ditadura militar, e tentaram se vender sob o rótulo de "progressistas" usando palavras mágicas como "mobilidade" e "interatividade" para ludibriar as esquerdas. Lerner, depois, no fim da vida, foi apoiar Temer, mas Kertèsz tenta se promover nacionalmente com eventuais entrevistas com o presidente Lula, quando este visita Salvador. O astro-rei da Rádio Metrópole é um bom caso de gente que se aproveita da falta de memória em relação aos anos de chumbo que faz com que os golpistas de outrora se fantasiem de "esquerdistas de ocasião".
Portanto, em relação à vitória de Fernanda Torres, comemoremos, mas não festejemos tanto. O momento é de reflexão. Eu Ainda Estou Aqui é um filme trágico, e nem se compara a repressão e tortura que Rubens Paiva sofreu com a baderna golpista de Oito de Janeiro, em 2023. Por mais que seja violenta e perigosa que seja, a direita bolsonarista soa em muitos casos caricatural de tão amadora, apesar de ter uma habilidade estratégica de cooptar as classes populares.
Isso porque temos a direita golpista "clássica", "profissional", cuja base civil sabe muito bem se comportar como lobos em peles de cordeiros, embarcando na retórica da democracia e até se travestindo de esquerdista. Muitos agem assim tanto visando os subsídios estatais de Lula - que é muito generoso em financiar quem lhe apoia - quando para ocultar o que fizeram nos verões passados, procurando ocultar o passado sujo enquanto se esforçam para que o Google lhes mostre somente uma imagem "limpa" e "saudável" de si mesmos.
As esquerdas precisam ser menos ingênuas quanto aos momentos atuais. Para quem chegou a endeusar até "médium espírita" que apoiou a ditadura, nunca se arrependeu disso e nunca lutou pela redemocratização (atribuindo, de forma seca, a ela como "vontade de Deus"), fazer Carnaval por um prêmio relacionado a um horrendo drama político é, no mínimo, uma futilidade.
Além disso, Eu Ainda Estou Aqui fala de um Brasil que esquecemos, pois não é o Brasil "democrático" que contrapõe aleatoriamente a "civilização" e a "barbárie", mas um país onde até mesmo alguns direitistas mais "civilizados" sentiam horror em ver os oprimidos lutando por direitos.
Nos anos de chumbo, lobos, raposas e hienas se uniam para combater galinhas e cordeiros. Hoje, porém, lobos e raposas tentam "democraticamente" atuar junto a galinhas e cordeiros, isolando as hienas que promovem badernas e desordens.
Portanto, a premiação dada a Fernanda Torres é uma grande conquista e nos enche de alegria. Mas a luta continua e, até hoje, esquecemos que não se faz reconstrução em clima de festa. O momento pede que, em vez de cruzarmos os braços numa festa sem fim, acreditando que um homem de 80 anos conduza sozinho o futuro do nosso país, sigamos batalhando e fazendo nossa parte, antes que nossos "amigos de ocasião" nos traiam, voltem para o seio dos golpistas e elimine os Rubens Paiva do futuro.
O momento, não custa repetir, é de cautela e de muito trabalho.
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