Não me parece explícito que o livro O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde), de Robert Louis Stevenson, seja um dos livros mais populares entre os brasileiros. Mas essa obsessão em acolher fenômenos que às vezes são uma coisa, às vezes são outra, mostra o quanto os brasileiros gostam sempre de alguma contradição, sobretudo quando se trata de supostas novidades que não rompem com o velho e obsoleto (que insiste, no entanto, em manter sua serventia).
A obsessão da classe média abastada, primeiramente, por Jair Bolsonaro e, depois, por Lula, é um exemplo ilustrativo. Juntos, os imaginários lulista e bolsonarista já montam em si uma dicotomia do tipo Doutor Jekyll e Senhor Hyde, o não-raivismo e a raiva, num maniqueísmo fácil de um Brasil qualquer nota, em que não temos, na prática, mais esquerda e direita, mas "alegria" e "ódio".
O Brasil nunca se resolveu ao assimilar ou adotar novidades. Elas sempre têm que estabelecer um acordo com o que é velho e estabelecido há tempos. É sempre o vinho novo em odres velhos, é sempre um novo edifício construído em bases velhas, enferrujadas e apodrecidas. É sempre o novo pedindo licença para o velho para conquistar um espaço, e sempre assimilando aspectos do velho para sobreviver ou ganhar maior adesão popular.
Culturalmente, temos vários exemplos disso. A nossa cultura rock sempre se valeu de uma rebeldia domesticada, assimilando duplamente os sons crus da geração de 1955 e, depois, da Beatlemania, e, por outro lado, os pastiches "roqueiros" trazidos principalmente da Itália, mas também, em parte, por jovens cantores românticos dos EUA, tipo Ricky Nelson e Pat Boone. O atraso brasileiro é tal que, quando o psicodelismo começou a pegar no Brasil, foi nos anos 1970, atropelado pelo rock progressivo e pelo hard rock.
Mas o radialismo rock também teve seu momento "Médico e Monstro", quando a "rádio rock" da Faria Lima, a 89 FM, se prevaleceu no mercado, sufocando, pela pressão econômica, as rádios de rock originais. A 89 FM se valeu da dualidade de ter uma linguagem Jovem Pan e momentos de pretenso radicalismo roqueiro, como num comportamento bipolar.
Em dados momentos, a 89 parece sucumbir à linguagem Jovem Pan, com humorísticos, promoções (do tipo "viagem para Cancun" ou "sorteio para um carro Renegade") e a locução poperó de Tatola e Zé Luís - "discípulos" não-assumidos de Emílio Surita, cujo estilo inspirou, escancaradamente, o Demmy Morales no outro lado da Via Dutra - , mas, em outros, a rádio se encanava em tocar sons mais pesados e a publicar no seu site notícias até de roqueiros que a emissora dificilmente tocaria na programação. Uma bipolaridade capaz de alternar genéricos do Pânico da Pan com arremedos de Rock Brigade.
A maior cantora brasileira, Ivete Sangalo, também é símbolo dessa bipolaridade cultural, quando ela tentava soar "mais MPB" em interpretações tendenciosamente "sofisticadas" (como no projeto com Caetano Veloso e Gilberto Gil), enquanto por outro lado esbanjava populismo brega-popularesco, ao lado de breganejos, sambregas, funqueiros e, sobretudo, axézeiros.
O "funk" também é reflexo dessa bipolaridade. Um ritmo conservador, musicalmente precarizado, de conteúdo machista, que faz apologia e glamourização da pobreza e da ignorância, é tratado como pretensa vanguarda cultural dentro de um aparato falsamente subversivo, que no entanto não consegue esconder que não passa de um truque de marketing, a serviço do grande mercado que os funqueiros fingem não fazerem parte.
Na religião, temos o caso do blindado Espiritismo brasileiro, que surgiu misturando uma compreensão superficial do legado francês de Allan Kardec com as aventuras mistificadoras do deturpador Jean-Baptiste Roustaing, que na prática forneceu as bases para a religião brasileira se tornar um Catolicismo medieval de botox, repaginado por um "médium" charlatão de Pedro Leopoldo e Uberaba, suposto símbolo de uma "caridade" que nunca existiu e com uma morte suspeita de um sobrinho que deveria ser investigada, apesar do caso ter ocorrido há mais de 60 anos.
A partir desse "médium" (que, mesmo com aparência e ternos estilo "anos 1940" e ideias medievais, ainda é visto pela bipolar "boa" spciedade como "futurista"), o "nosso Espiritismo" virou um fenômeno bipolar, apelando, em dado momento, para o pretenso acolhimento dos ensinamentos originais de Kardec, incluindo a hipócrita apreciação dos alertas de Erasto de Paneas, e em outro a pregação de dogmas igrejeiros de natureza católico-romana e marcados pela mais do que retrógrada Teologia do Sofrimento.
E tudo isso temperado por uma literatura fake cuja falsidade ninguém tem a coragem de reconhecer oficialmente, nem mesmo o estranhíssimo "livro do Párnaso" de 1932, na qual suposta multidão de poetas e escritores publicam obras que destoam de suas personalidades, incluindo um risível Olavo Bilac que "perdeu" o seu talento poético peculiar.
Humberto de Campos, então, nem se fala. Não há sombra dele nas obras psicografake que carregam o seu nome, em livros que criminosamente ofuscam a obra original do injustiçado escritor maranhense. E tais obras "espirituais" fogem não só do estilo, mas do ritmo de narrativa e até da linguagem coloquial que marcou a carreira de Humberto na sua vida terrena. O descontraído e fluente Humberto de Campos dava lugar a um pretenso "espírito" de prosa pachorrenta e deprimente, cansativa de se ler.
O que o "médium da peruca", que defendeu a ditadura com mais empenho do que o já entusiasmado Cabo Anselmo, fez com Humberto, mesmo sob o constrangedor pseudônimo de "Irmão X", é uma coisa que nem os piores inimigos conseguem fazer. Ainda mais quando o "médium", para se livrar de acusações de que estaria ofendendo o povo pobre de Niterói e adjacências, vítima de um incêndio num circo em 1961, botou tudo na conta do Humberto "X", que já não estava vivo para se defender.
E aí vemos um comportamento bipolar, com o Espiritismo brasileiro oscilando entre a pieguice gosmenta das evocações igrejeiras, dos louvores e da emotividade cafona - incluindo a "masturbação pelos olhos" da comoção fácil - , e apreciações pretensamente científicas da Codificação, com evocações pedantes de personalidades do mundo científico do porte de Isaac Newton, Sigmund Freud e Albert Einstein.
Isso causa, entre os seguidores e simpatizantes do Espiritismo brasileiro, uma constrangedora postura contraditória, em que pessoas que defendem causas LGBYQIA+, curtem rock pesado, ou mulheres que fazem topless na praia da Barra da Tijuca, cultuem o tal "médium da peruca" que era homofóbico, machista, só ouvia música clássica e, quando muito, Roberto Carlos, e tinha ideias medievais de um moralismo ao mesmo tempo punitivista e demasiado tradicional. Trata-se, portanto, de um amor nada recíproco, com pessoas que se dizem modernas mas cultuam um religioso retrógrado.
Hoje vemos um governo Lula oscilando entre o neoliberalismo mais bonzinho e um esquerdismo mais moderado, prometendo, de um lado, não mexer muito com a reforma trabalhista de Michel Temer, mas, de outro, tentando ver se "tira" o controle da Eletrobras da iniciativa privada. Mais um capítulo da onda de contradições, da bipolaridade que parece ser o destino do nosso país, sempre no eterno cabo-de-guerra valorativo entre o novo e o velho.
Já não basta a própria "boa" sociedade que sempre comandou o senso comum do Brasil desde que seus ancestrais, na Casa Grande, comandavam uma sociedade escravocrata, ser contraditória em si, defendendo costumes aristocráticos alternados com arremedos de hábitos populares, o tal "gente como a gente" que mais parece ser uma apologia da decadência cultural brasileira.
É uma elite do atraso que não quer ser assim conhecida senão ela chora, porque agora está ao lado de Lula (mais por causa da presença de Geraldo Alckmin e dos grupos identitários festivos do que por algum reconhecimento tardio do esquerdismo).
Essa elite se perde entre a opulência da riqueza e do alto poder aquisitivo que lhes garante comprarem o automóvel do momento, e as poses de pretensa pobreza humana imitando a linguagem e o visual dos favelados a ponto de criar arremedos de "festas da laje" em condomínios de luxo nas grandes cidades.
É uma elite que se diz "culta", mas é capaz de se atrasar para ver uma peça de teatro. Que se diz "diferente" sempre aderindo à mesmice das convenções culturais (do hit-parade musical ao futebol). Que se diz defensora do combate à fome, mas é a primeira a deixar restos de comida em restaurantes, pouco se importando se seu destino é o lixo.
É uma elite que, ao obterem tatuagens no corpo, exaltam a "liberdade", quando a tatuagem, na verdade, é uma forma moderna das antigas marcações de ferro que faziam o sofrimento dos escravos seja quando punidos, seja quando marcados para identificação de seus proprietários.
Vemos o quanto o ideal do "médico e monstro" dos brasileiros médios contamina nosso cotidiano e impede que o Brasil se desenvolva. Porque estamos à mercê de uma sociedade dominante - mas que se recusa a admitir-se como tal - que quer ser uma coisa e quer se outra, e confunde contradição com equilíbrio. Acha que ser contraditório é ser "versátil" na sua bipolaridade, e pensa que ser uma coisa num momento e ser outra coisa em outro é "quebrar a rotina".
Daí que até faz sentido que o famoso livro de Robert Louis Stevenson não seja um dos mais vendidos nem populares no Brasil. É porque sua narrativa é uma obra de ficção e, aqui, Doutor Jekyll e Senhor Hyde não são personagens literários, mas personagens reais do nosso cotidiano.
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