"RIVALIDADE" ENTRE LULA E AS ELITES DA FARIA LIMA LEMBRA MUITO A FALSA DISPUTA DAS RAINHAS DO RÁDIO EMILINHA BORBA (E) E MARLENE.
"Lula enfurece o agronegócio", "O mercado financeiro perdeu com a vitória de Lula", "Lula enfrenta o neoliberalismo nos EUA", "O governo Lula desagrada seriamente a Faria Lima". Ideias assim são ventiladas constantemente pela mídia progressista, antes comprometida com a recuperação do jornalismo de verdade, mas hoje essa mídia surtou e se tornou mais panfletária do que informativa.
Por que eu digo isso? Porque eu, como jornalista, tenho a obrigação ética de juntar as peças dos quebra-cabeças factuais. Peças soltas que se contradizem podem fazer sentido e, sem se ligarem, integrar um todo fictício, imaginário, ao mesmo tempo fragmentado e bipolar, no qual ideias antagônicas se alternam sem que oferecessem alguma estranheza ao observador médio.
É como se uma coisa pudesse ser algo em um momento e o seu oposto em outro, sem ameaçar a harmonia da compreensão superficial, das sensações que vivem a ilusão confortável de confundir contradição com equilíbrio e versatilidade, felizes na fantasia de que uma coisa pode ser algo e depois não sê-lo pelo simples capricho de que a contradição "quebra" a rotina, pela falácia de que "não se pode ser a mesma coisa sempre".
O Brasil vive essa ilusão. Temos uma classe média dominante, a elite do atraso que se recusa a ser assim conhecida. Uma classe provinciana, atrasada mesmo quando tenta parecer moderna e novidadeira, ocupada com subcelebridades, com música popularesca, com seitas "espiritualistas" de qualquer natureza, transformando o Brasil-Instagram num engodo culturalmente vira-lata, entregue à mais gosmenta bregalização sob uma trilha sonora submetida aos hits repetitivos de sempre ou à música popularesca mais escancarada.
Como a mediocrização cultural é tanta e a devastação sociocultural é algo que ocorre, sistematicamente, desde abril de 1964 mas de maneira mais efetiva dez anos depois, temos que aceitar uma "democracia qualquer nota", uma "democracia" do "sim" e do "sim, senhor", com a privatização simbólica do "mal" entregue a Jair Bolsonaro e sua doutrina do raivismo.
Desta forma, se houver um valor obscurantista de direita, ultraconservador e sombrio, mas que é difundido sem a gramática do hidrofobês e sem uma aparente demonstração de intolerância social, tudo agora vira "progressista" nesse balaio de gatos "democrático", dessa gororoba em que valores retrógrados se misturam com outros avançados, desde que o elemento comum seja a ausência de raiva, o fedor e o sabor de rancor que hoje só carateriza, oficialmente, o bolsonarismo.
E é irônico que, em abril de 1964, o golpe militar se deu sob a desculpa de "recuperar a democracia", tendo sido, até a relativa abertura gradual da Era Geisel, conhecida unicamente como "revolução democrática". Mas os netos da antiga elite do atraso que, com suas "marchas da família", ocupavam há quase seis décadas o Vale do Anhangabaú paulistana e a Av. Rio Branco carioca, entre outros locais, querem se passar por progressistas e libertárias.
Os netos das elites golpistas de 1964 agora usam a "democracia" de maneira "positiva", mas igualmente vaga. Se "democracia", nos anos de chumbo, era sinônimo de um projeto direitista que protegesse os privilégios das elites mais ricas e conservadoras de seu poder social, hoje a mesma palavra define um projeto político supostamente popular, mas que trouxesse apenas benefícios relativos para os pobres, em que pesem promessas de melhorias mais audaciosas.
A única diferença é que o povo pobre, ao menos, se tem a promessa de uma participação um pouco maior no "bolo" da economia brasileira. E que a manifestação do senso crítico, banida após o AI-5 - nos primeiros anos da ditadura militar havia ainda muita manifestação de senso crítico nos círculos socioculturais do país - , hoje é discriminada não sob a ameaça de prisão e morte, mas sob a ameaça do cancelamento das redes sociais ou, na melhor das hipóteses, no bloqueio de mensagens nos fóruns do aplicativo Disqus utilizado pela mídia progressista.
Ou seja, saímos da tal "ditadura" de Jair Bolsonaro - cujo governo foi um golpismo autêntico mas incompleto, tornando exagerada a definição como "ditatorial" - para uma "democracia" da qual a livre expressão do pensamento crítico não é formalmente proibida, mas é socialmente desestimulada.
Quem está com a faca e o queijo políticos na mão é a elite do atraso na sua "boa" parcela. Tem as esquerdas identitárias, que são esquerdistas mais por protocolo ou formalidade, pois seu conteúdo é de centro-direita, e tem a burguesia da Faria Lima e similares, o chamado "mercado", a aristocracia propriamente dita.
Em outras palavras, a "democracia" que agora é simbolizada pelo atual governo Lula, em verdade, é uma democracia no sentido burguês do termo, conservadora institucionalmente, apenas flexível na liberação de comportamentos, ações e manifestações. Em tese, todos têm voz e vez, mas a palavra final fica sempre para uma elite detentora de privilégios financeiros e sociais, mesmo a "libertária" elite identitária que se acha "pobre, pobre, de marré de si".
São as esquerdas de avô ripongo, inclinado ao desbunde e afeito a uma leitura jovemguardista da Nação Woodstock, e de avó beata, identificada ao obscurantismo religioso em nome do qual pregou a saída imediata de João Goulart do comando do Brasil.
Por isso essas esquerdas de fachada, analfabetas quanto à literatura marxista, acolhem os "brinquedos culturais" muito em voga na televisão ditatorial de 1974-1979. Do avô ripongo, acolheram o hábito de fumar "baseado", do sexo livre, do hedonismo a todo custo, representado pelo "funk", pela axé-music, pelo "pagode romântico" e pelo brega mais animado, entre outros ritmos. Da avô beata, a religiosidade extrema, a crença em Deus, o culto a pretensos filantropos como os "médiuns espíritas", a submissão hierárquica em termos flexíveis.
E é através dessa classe que se fazem narrativas mentirosas aqui e ali. Como dizer que a bregalização é a "verdadeira cultura popular", mesmo quando ela trata o povo pobre de forma caricatural, um preconceito que sempre se ocultou sob o discurso do "combate ao preconceito".
E como hoje vivemos o "bom" momento do protagonismo artificial das esquerdas, na verdade um cenário na qual as esquerdas pequeno-burguesas apenas estão à frente de um processo político que, todavia, é comandado nos bastidores pelo neoliberalismo, aí vemos o quanto existe de falta de compromisso com a verdade e a coerência dos fatos.
Se não juntamos as peças do quebra-cabeça, fica natural ver Lula abraçado aos empresários da Faria Lima, falando que os empresários "irão lucrar muito no governo (Lula)", e, por outro lado, achar que Lula irá fazer um governo mais à esquerda.
Estou achando as coisas fáceis demais, para um Brasil que acabou de sofrer o golpe político de 2016 e os retrocessos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Em termos de historiografia e ciência política, 2016 foi ainda há pouco, e os efeitos políticos desse desastroso momento não terminaram e não creio que com Lula eles cessarão.
Lula não pode arrombar os portões da História, como arrombou os portões da democracia apostando numa "democracia de cabresto" na campanha presidencial, demonizando a Terceira Via e o que vier de concorrente não-bolsonarista. Lula não é o proprietário da História, e eu tenho receio de que essa pressa confusa em ver o Brasil no Primeiro Mundo pode causar um efeito contrário e pior.
Afinal, Lula se enche de contradições, desde que começou a campanha presidencial. E vamos combinar que seu envolvimento com a frente ampla demais não é de graça. Lula tem dívidas com seus aliados neoliberais e ele não poderá, de verdade, desafiar o poder da direita moderada que o ajudou a ganhar as eleições.
Toda essa "rivalidade", que faz a mídia progressista ventilar textos especulativos e sem fundamentos nem esclarecimentos devidos, é apenas um jogo de cena para o Lula parecer "ousado" e "revolucionário" para os olhos do ingênuo público esquerdista de hoje. É uma rivalidade postiça, do tipo das antigas Rainhas do Rádio, Emilinha Borba e Marlene, feita só para distrair e divertir o público.
Por trás, nos bastidores, vemos Lula mostrando o verdadeiro sentido da "democracia": se aliando com as elites, de forma a permitir que o povo pobre caiba no orçamento desde que não represente ameaça aos mais ricos. Por isso a reforma tributária vai demorar a ser feita. A taxação dos mais ricos, se ocorrer, terá que evitar os que ajudaram Lula a vencer nas urnas. A estes magnatas, cabe o "democrático" privilégio de continuar se enriquecendo, conforme Lula prometeu em campanha.
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