Lula já descumpriu seu maior compromisso de campanha. A ênfase na reconstrução do Brasil, no combate à fome, à miséria e ao desemprego, na inclusão do povo pobre no orçamento, tudo isso foi deixado em segundo plano. Depois de tanto alarde para a urgência de sua vitória eleitoral, ao arrepio do jogo democrático da diversidade competitiva - Lula se impunha como "candidato único" - , usando a fome como tema primordial de sua campanha, agora o presidente mudou de ideia.
A impressão que se tem é que Lula, saindo-se vencedor no segundo turno, investiu no terceiro turno: o desmonte do bolsonarismo, tarefa que poderia ser feita por outros de competência específica, como o ministro da Justiça, Flávio Dino, e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Ou seja, já tem gente para cuidar da punição e do desmonte do bolsonarismo.
Agora, vem o quarto turno: viajar para promover a imagem do Brasil no exterior. Lula já viajou para países da América do Sul, se encontrou com Joe Biden nos EUA, e ultimamente anda mediando o acordo de paz entre Rússia e Ucrânia, propondo um grupo de países não envolvidos no conflito para intermediar negociações através do diálogo.
Para piorar, Lula já fez seu anúncio: vai viajar para o exterior todo mês, sob a desculpa de melhorar a imagem do Brasil no exterior. Lula não precisa disso. A tarefa pode ser feita somente pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, ou pela atuação de gente especializada em diplomacia, como Celso Amorim. Lula não precisa cuidar de excursionar no exterior nem para dar cascudos em bolsomínions. Lula tem que ficar no Brasil, cuidando dos brasileiros, pois foi para isso que ele foi eleito.
Infelizmente, vejo que a verdade anda doendo na cabeça de muita gente. Meus textos mais críticos a Lula demoram para ser lidos, têm dificuldade para repercutir. Enquanto isso, na mídia progressista, o que vejo são alegações sobre supostas realizações do governo Lula que carecem de fundamento, embora trazidas por gente experiente na nossa imprensa.
Falam que Lula "governou muito" nos dois primeiros meses de governo. Que ele "lançou medidas em favor do povo brasileiro", "está governando mais à esquerda", que "em dois meses realizou mais do que se espera em um ano". Tudo isso sem fundamentação, sem justificativa, ventilando tais invencionices sem um mínimo de responsabilidade com os fatos. Só falta dizer que Lula, nadando em Mar del Plata, brigou com um tubarão feroz que apareceu naquelas águas e arrancou os dentes do animal.
Sou jornalista e, paciência, preciso observar as coisas com cautela. Não posso me contentar com a esfera de sonhos e fantasia que fazem multidões dormirem tranquilas. Muita mulher em Salvador? Como se é só eu ir para os subúrbios, ou mesmo para bairros como Calçada, Mussurunga ou mesmo Itapuã e vejo um monte de homens, negros e pobres, vivendo na capital da Bahia sem ter direito sequer a ser um número estatístico!
O jornalista precisa ter bom senso e não confiar totalmente em narrativas oficiais, de um lado, e em narrativas clandestinas, de outro, se em ambos os fatos são desenhados não como a realidade os apresenta, mas conforme o desejo sonhador de cada interessado. É um jogo complicado. Eu não posso aceitar a dita "realidade pronta", só porque um considerável número de pessoas compartilha sua narrativa. Ainda que haja mais de uma narrativa para interpretar a realidade, é preciso estar próximo da fidelidade dos fatos, em vez de manipulá-los para o agrado da pessoa interessada.
E aí eu prefiro juntar as peças de quebra-cabeças. Se juntando as peças se forma uma figura considerada incômoda, nem por isso se deva aceitar manter as peças separadas. E eu procuro ter um espírito de discernimento, como jornalista, que no caso de Lula me faz unir pontos contraditórios e verificar problemas gravíssimos na sua conduta, tanto na campanha presidencial quanto no comando atual do Brasil.
Não vou bancar o tolo e achar que Lula acerta em tudo. Ou fingir que Lula está acompanhando diretamente o combate à fome enquanto está longe de nós, em Washington, falando com o presidente dos EUA, Joe Biden. Não posso confundir reconstruir o Brasil com descontruir ou destruir o bolsonarismo, pois embora as duas coisas estejam relacionadas, uma é diferente da outra.
O grande problema é que vivemos, no Brasil, a supremacia de uma elite do atraso que não quer ser conhecida por este nome senão chora. É uma "boa" sociedade que acha que pode julgar os vivos e os mortos, os ricos e os pobres, e se proclamar predestinada à dominação mundial, pela "virtude única da alegria do povo brasileiro". É uma pequena-burguesia que pode não ter a fortuna de um Jorge Paulo Lemann, mas também não tem a vivência de falar o que quer em nome do povo pobre.
Por isso, essa "boa" sociedade controla as narrativas e seu compromisso com a verdade não parece muito verdadeiro. Ver que Lula está fazendo um "bom governo", enquanto só se preocupa em blindar sua imagem, se promover diante do resto do mundo e combater o risco de golpe bolsonarista, é ser bastante preguiçoso na desinformação e na falta de observação mais cautelosa.
Pelo que eu saiba, é necessário que primeiro se cuide da casa para depois mostrá-la às pessoas de fora. Lula não começou sequer a reconstruir o Brasil, e quer ostentar o país para as autoridades de outros países. E a elite do atraso, que não quer ser conhecida por este nome senão ela chora, comemorou algo que nem começou a ser sequer discutido: fez um baita Carnaval, como se tudo já estivesse bem.
Não, não está. As convulsões sociais continuam ocorrendo. Houve mulher internando à força sua mãe, patrão matando marido de funcionária, homem matando pai de um jovem autista, sobrinha de vereador sofrendo tentativa de feminicídio. Houve chacina familiar em Brasília, no começo deste ano. E chacina motivada por um feminicídio, no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro. Houve chacina em Magé e chacina em Sinop, cidade do interior de Mato Grosso.
Teve pastor evangélico dizendo que há "gente de bem" presa por conta das invasões e estragos em Brasília, em 08 de janeiro passado. Mas tem "médium" baiano, amigo e parceiro do falecido "médium" de Uberaba - apoiador convicto e radical da ditadura militar - , que, a exemplo do outro, desenvolveu uma imagem associada a "paz, amor e caridade", que classificou como "injustas" tais prisões e tamanha criminalização dos revoltosos, embora seja mais que evidente que os atos desses invasores constituem em crimes diversos.
E isso mostra o quanto o Brasil está doentio. Se a religião mais elogiada pela chamada "opinião pública" - leia-se a "opinião padrão" de uma elite do atraso que se recusa a ser assim conhecida, mas que prefere ser creditada como "a humanidade" - , o Espiritismo brasileiro, vive a trajetória tóxica conduzida por três picaretas e charlatães, um falecido "médium" mineiro, que usava peruca, e dois baianos, um fazendo piadas contra gordos, louras e sogras, e outro desmascarado no seu bolsonarismo, então vemos o quanto o Brasil não está bem.
Da mesma forma, o maior sucesso musical e um dos sucessos emergentes, respectivamente "Zona de Perigo" de Léo Santana, e "Lovezinho", de MC Treyce, viralizada pelas danças do influenciador digital Xurrasco, mostram o quanto o cenário cultural brasileiro está catastrófico, não adiantando chuvas de dinheiro para conter o dilúvio de mediocridade e idiotização sociocultural que no Brasil atinge dimensões bíblicas.
O Brasil necessita ser reconstruído, com ampla revisão de nossas estruturas e valores sociais. O "desenho" sociocultural do nosso país ainda continua seguindo as bases vigentes dos períodos da ditadura militar, entre o fim do governo do general Emílio Médici e todo o governo do general Ernesto Geisel. Estamos, portanto, há 50 anos mantendo a mesma base de valores sociais, os mesmos ídolos, os mesmos paradigmas. Isso tem que acabar, mesmo que seja para abrir mão de fenômenos e ídolos que muita gente está acostumada a achar agradável.
Com as viagens de Lula e a ilusão de que, da noite para o dia, o Brasil passou a "ficar bem", apesar da narrativa admitir a devastação bolsonarista, então ficamos perguntando se Lula vai primeiro reconstruir a Ucrânia, abandonando os brasileiros. A situação do nosso país está pior, é necessário uma mexida em todos os âmbitos da vida brasileira. Se é para o Brasil mudar, que se saia da zona de conforto da mesmice idiotizante.
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