Que o Brasil precisa de mudanças, isso é verdade, embora o clima de não-raivismo faça com que a elite mais influente na sociedade brasileira, a elite do atraso que não quer ser chamada por este nome senão ela chora, deseja uma democracia "qualquer nota" em que as decisões sociais são sempre feitas "de cima", de uma burguesia que finge não tomar as rédeas de um suposto esquerdismo democrático.
Sim, embora tenha muita gente que não quer mudar as coisas e luta para deixar tudo como está, descontando somente o entulho bolsonarista, bem ou mal muitos valores antigos têm que ser revistos, afinal a não revisão dos mesmos criou condições para o golpismo de 2016 e para a crise bolsonarista, cujo legado tardio é o ataque terrorista do Oito de Janeiro.
As esquerdas tiveram, entre 2014 e 2023, muitas desilusões. Elas pareciam ter um Brasil quase exclusivo para elas, com o culturalismo conservador com falso cheiro de povo cujo fedor e bolor vieram dos tempos do "milagre brasileiro" da ditadura militar, mais ou menos 1974.
A partir daí, vieram escândalos que derrubaram toda uma campanha de intelectuais "contra o preconceito", misturando bregalização com esquerdas identitárias. Os escândalos envolveram problemas de direitos autorais (ECAD) e das biografias autorizadas (Procure Saber). No primeiro caso, a intelectualidade pró-brega chegou a falar numa palhaçada chamada "copyleft" numa época em que se acreditava que as empresas da Big Tech eram de esquerda, democráticas e libertárias.
Vieram muitas decepções. Muitos ídolos brega-popularescos se mostraram reacionários. As empresas de Big Tech, conservadoras, eventualmente censoras e influentes nas propagandas golpistas de 2016-2020, foram outra desilusão.
A música brega-popularesca, que a campanha "contra o preconceito" creditava como um paraíso de progressismo libertário - definição tendenciosa e discutível, vide Esses Intelectuais Pertinentes... - , viu desmoronar seus quadros com a revelação de um elenco predominantemente bolsonarista, forçando a praticamente separar o "sertanejo", quase todo alinhado com o então presidente Jair Bolsonaro.
Antes disso, as esquerdas médias assediadas pela intelectualidade pró-brega perguntavam se o "sertanejo" representava a "reforma agrária na MPB", embora, pelo menos, até 2007, se tomava o cuidado de evitar vínculos com o MST, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, então demonizados pela grande mídia. Nem o mais tendencioso pseudo-esquerdista vincularia a música brega-popularesca ao MST, com todas as pretensões "marxistas" de suas narrativas.
A vida não é uma novela das nove da Rede Globo, por mais que se insista que o não-raivismo se limite a expurgar o espólio bolsonarista. Por isso, há problemas na manutenção ou não dos "brinquedos culturais", que envolvem desde a idolatria aos ditos "médiuns espíritas" a gourmetização da objetificação do corpo feminino, creditado como um suposto "feminismo popular".
Zezé di Camargo & Luciano passaram de pretensos queridinhos das esquerdas a conservadores explícitos, com o primeiro se assumindo bolsonarista. O escândalo machista de Nego do Borel acabou mostrando que também existe funqueiro bolsonarista. Um "médium" de Salvador, que fazia turismo o tempo todo no exterior sob a desculpa de participar de "encontros espíritas", recentemente manifestou apoio aos truculentos invasores de Oito de Janeiro. O craque Neymar também se tornou bolsonarista incurável.
As esquerdas, depois da constrangedora complacência com o culturalismo direitista pós-ditadura, apoiado sob a desculpa de que seus fenômenos "faziam o povo pobre sorrir", têm que ter cautela, mesmo num contexto em que, no âmbito político, as esquerdas estão agora ao lado da direita moderada e, em tese, há todo um caminho possível para a prevalência de um projeto político progressista no Brasil, quando a promiscuidade política entre neoliberais e progressistas usa o rótulo de "democracia".
Será que faz sentido hoje jogar o direitismo de Waldick Soriano para debaixo do tapete e relançá-lo "esquerdista e libertário" num documentário? Será que faz sentido chamar o "médium da peruca" de "marxista", mesmo quando ele manifestava seu anticomunismo ferrenho num programa de TV em 1971, só porque o comentarista que fez essa classificação equivocada está com raiva de Silas Malafaia? Neste caso, será que somente neopentecostais e católicos-carismáticos podem ser reacionários?
Ainda há, por outro lado, muita choradeira em prol do "funk", que a burguesia intelectual insiste em dizer que é "uma autêntica rebelião cultural popular". Sempre aquela narrativa chorosa, do "funk" vítima de suposto preconceito, enquanto, depois do "funk ostentação" paulista, começa a emergir o "funk amazonense" via Funkeiros Cults, outra organização a surfar no "combate do preconceito".
Continua o eterno silêncio das esquerdas em relação a muitas mulheres-objetos que levam a objetificação do corpo feminino às últimas consequências. Será por causa da libido dos "esquerdomachos" ou do "corporativismo da vagina" das feministas identitaristas?
E o futebol, também, vive no desejo sonhador das esquerdas em retomar os símbolos da CBF, depois do desgaste dessa simbologia pelos bolsonaristas, algo que não teve exceção nos atos lamentáveis de Oito de Janeiro. Embora já estivesse distante o sonho da conversão de Neymar em "Neymarx", as esquerdas médias sonham com 1958, época em que o futebol brasileiro tornou-se glamourizado, uma aura que perdeu a razão de ser em 1987 mas que seus fanáticos seguidores perseguem até hoje.
O Brasil vive uma situação ainda muito delicada. O golpe de 2016 está supostamente superado, como uma aparente página virada da História do Brasil. Mas a situação, creio, está imprevisível, principalmente pelos erros de Lula em descumprir a promessa de priorizar o povo pobre, mais preocupado em promover sua imagem pessoal no exterior.
Lula, além disso, está estranhamente muito velho, até para os padrões de idoso de 78 anos. Não se sabe se Lula vai completar todo o mandato e, na festa dos 43 anos do PT, o presidente disse para "todos rezarem por ele", embora ele tenha dito que "vai demorar para morrer". Outras estranhezas são as frequentes expressões zangadas de Lula, que sugerem "sensação de dor" e sua fala e sua pele envelhecida também despertaram apreensão em muita gente.
Independente disso, o vice-presidente Geraldo Alckmin realizou, ontem, sua primeira aparição pública como presidente em exercício. Viajou para São Sebastião para ver a tragédia no Litoral Norte paulista e, afirmando que "só está cumprindo a orientação de Lula", prometeu dar casas para os desabrigados do temporal situadas em condomínios em obras em Bertioga, também na mesma região litorânea.
Em todo caso, o Brasil segue, Lula continua presidindo o país com normalidade. Resta as esquerdas decidirem o que irão fazer com os "brinquedos culturais" que agora permanecem inutilizados, mas guardados nos armários.
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