E AS ESQUERDAS QUERENDO TRANSFORMAR EVENTOS COMO O CARNAVAL EM SALVADOR EM "ENGAJAMENTO POLÍTICO". PODE ISSO?
Vivemos numa sociedade hipermidiatizada e hipermercantil. A cultura que prevalece no Brasil não se desenvolve como o ar que respiramos. O entretenimento é comandado pelos impérios midiáticos. "Liberdade" é uma concessão de uma meia-dúzia de empresários da Comunicação que têm em suas mãos o controle do bom senso e do inconsciente coletivo.
Os valores socioculturais prevalescentes não se desenvolvem naturalmente. A sociedade brasileira não é hidropônica. Vivemos, no Brasil, um cenário cultural devastador do qual um simples aumento de verbas para a Cultura é inútil para reverter o quadro. Dinheiro não traz talento.
Nesses tempos de não-raivismo, é preocupante ver a hegemonia de uma positividade tóxica, essa obsessão pela felicidade sem motivo, intransigente com as tristezas e dificuldades alheias, e paranoica em transformar a vida humana numa festa 24 horas por dia.
A positividade tóxica, que contradiz a narrativa de reconstrução do Brasil, se manifesta principalmente no Carnaval de Salvador, porque, de repente, Jair Bolsonaro saiu e o nosso país mergulhou numa aparente felicidade, como se tudo já estivesse bem. Também, a classe média que integra a elite do atraso que não quer ser conhecida por este nome, nunca foi prejudicada mesmo sob as trevas de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
E vemos a simbologia do É O Tchan, ícone dessa "felicidade de Instagram", dessa "alegria" rebaixada a um produto de consumo, puxando a mística seja através de suas dançarinas, mostrando o mundo de cor e fantasia nas redes sociais, uma "positividade" que não soa muito humana, pois é tudo forçadamente alegre, forçadamente animado, a "alegria" como um produto de consumo que não pode sumir do estoque dos internautas afoitos.
Tudo bem que tudo isso possa existir, o consumismo da axé-music, seus cantores e musas, todo o entretenimento comercial do Carnaval de Salvador, dentro desse clima de "felicidade da noite para o dia" quando não se precisa mais "reconstruir o Brasil", apenas bastando prender os revoltosos do 08 de janeiro e, ao menos, tornar Jair Bolsonaro e seus séquitos inelegíveis.
O problema é o pretensiosismo, a gourmetização de tudo isso, num contexto de terraplanismo cultural em que as pessoas confundem hit com "vanguarda", como se lacrar na Internet fosse o suprassumo da "cultura alternativa", o que é uma insana falta de lógica e de discernimento.
As pessoas se deslumbram demais com a movimentação das redes sociais - cuja produtividade dá a falsa impressão de que culturalmente o Brasil vai bem - e com o prazer oferecido como produto de consumo, seja na erotização fácil de nomes como Mulher Melão e Geisy Arruda, seja pela curtição presencial dos agitos noturnos, seja por festejos como o Carnaval, principalmente o de Salvador.
E aí há pretensão atrás de pretensão. Em vez das pessoas admitirem que se trata de um entretenimento comercial, de um consumismo hedonista, há quem faça preciosismo. Gente falando besteira e vomitando arrogância, tanto para creditar seus ídolos popularescos - como, no momento, os cantores de axé-music - , quanto para, com mal disfarçada inveja e ressentimento, dizer asneiras como "música comercial é Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá disputando a marca Legião Urbana com o filho do Renato Russo".
As pessoas curtem o seu divertimento e acham que se trata da oitava maravilha do mundo. Não é. Trata-se de um entretenimento medíocre, não exatamente cultural, pois não há a preocupação em transmitir valores sociais edificantes, sendo apenas uma diversão que se curte bebendo cerveja e se agitando. Apenas consumo de emoções. A alegria como um produto de consumo. O ato de beijar na boca também. Nada que possa contribuir para o crescimento existencial humano, diga-se de passagem.
O pretensiosismo de gourmetizar o Carnaval de Salvador como pretensa "vanguarda cultural", como tudo que faz sucesso hoje em dia no Brasil e que é vendido como falsa vanguarda, vai mais longe e vemos as esquerdas médias querendo que se transforme eventos desse nível em "manifestações políticas", em eventos que "causem impacto na vida das pessoas".
A ideia é transformar qualquer evento de entretenimento num suposto protesto popular, algo que, em tese, misturasse o hedonismo de Woodstock com algum suposto protesto marxista. Ou seja, os lulistas querem enfiar a "conscientização política" como uma prótese em eventos onde ocorre a música popularesca ou algum pop musical mais inócuo.
Como se não bastasse a patética atribuição de "Xibom Bom Bom", sucesso de As Meninas, como supostamente inspirado no livro O Capital, de Karl Marx - em que pese a música ser composta por um empresário e as cantoras terem sido mal-remuneradas nas apresentações ao vivo - , de repente até Ivete Sangalo é convidada pelos lulistas a viver seus momentos de "Bob Dylan", mesmo sem uma vírgula da poesia engajada que marcou o ícone folk estadunidense.
Enquanto os brasileiros esperam o salário mínimo chegar a R$ 1.320 - nos informamos que o valor de R$ 1.302 já está instituído - , fazendo malabarismo com as contas do mês, o Carnaval de Salvador recebeu generosas verbas públicas, antecipando a festa num Brasil aparentemente arrasado, que aliás está arrasado sim, mas fora da bolha da "boa" sociedade que monopoliza o senso comum e as narrativas da suposta realidade brasileira.
Como nas festas da Casa Grande que finge ser Senzala e se acha Quilombo, a elite do atraso que se recusa a ser assim conhecida - até para evitar ser responsabilizada pelo 08 de janeiro, pois a "boa" elite, pelo menos desde 2020 aderiu à "onda Lula" - , comanda a festa "popular", enquanto o verdadeiro povo trabalhador segue sua função de armar suas barracas e quiosques, vendendo produtos e apenas lucrando o dinheiro para sobreviver e pagar as contas.
O povo pobre fica à margem das festas. Participa delas de carona, como figurantes de um espetáculo cujo destaque são os foliões de classe média, uns vindos de redutos burgueses de outras partes do Brasil, ávidos em consumir a alegria-mercadoria diante dos trios elétricos da axé-music.
E o turismo sexual, por baixo dos panos, se anima com a fraude estatística de uma Salvador "feminina" tanto do imaginário machista quanto do feminista-identitário, que esconde uma grande quantidade de homens, negros e pobres, que não têm direito a ser sequer números nos censos da capital baiana, entregues ao desemprego ou ao subemprego como moradores de Salvador, mas creditados ainda às cidades do interior baiano que, virando cidades-fantasmas, servem para o coronelismo privado dos chefes políticos locais.
A imagem de Salvador como "cidade-mulher", produzida com surpreendente consenso entre machistas e feministas, serve para combinar a condição de "paisagem de consumo" das várias partes de Salvador, do Farol da Barra à Península de Itapagipe, o clima tropical e a necessidade de inserir nesse cenário a mitologia da sensualidade feminina, uma fantasia que há décadas se impõe à realidade, fazendo muita gente dormir tranquila com essa ilusão feita "verdade absoluta" para o bem do hedonismo festeiro.
E aí, por outro lado, mocinhas de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Curitiba e Florianópolis podem, na sua provisória estadia na capital baiana para pular a axé-music, se somarem artificialmente à ficção estatística das supostas habitantes de Salvador, para o bem do turismo sexual oculto do mercado legalizado, mas decisivo para atrair mais homens e mais homens, estes sempre "desaparecidos" dos dados estatísticos. Sejam eles ricos ou pobres, brancos ou negros. Em Salvador, quem é homem vem de "nenhum lugar" e vive "em lugar nenhum".
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