O "funk", um dos carros-chefes da idiotização da cultura popular brasileira, renovou mais uma vez a sua choradeira vitimista-triunfalista, depois que o produtor Rick Bonadio criticou o gênero.
Um artigo do portal esportivo Betway, reproduzido pelo portal Terra, é um festival de joios com trigos através de um infográfico que evoca o funk autêntico e que é colocado, tendenciosamente, para se misturar com o joio do "pancadão".
A manobra dá a crer que tudo é "maravilhoso": o "funk", apesar de fazer sucesso, está "fora da mídia", o DJ Marlboro sonhava em ver o "funk" com diferentes sotaques regionais e que, apesar do ódio ao gênero, ele "obteve reconhecimento cultural legítimo" e coisa parecida.
Papo furado.
É a mesma choradeira que se observa numa grande elite de jornalistas, acadêmicos, escritores, famosos etc, que exalta o "funk" como suposta expressão das comunidades pobres.
Só que essa campanha toda tem um objetivo: manter o povo pobre rebaixado à imagem caricatural que garante o sono tranquilo dessas elites paternalistas.
O discurso é falacioso e usa todo tipo de argumento, da provocatividade à geração de empregos, para forçar a aceitação do "funk" como uma pretensa unanimidade.
Só que, infelizmente, essa narrativa "positiva", que idealiza um povo pobre aos moldes do núcleo feliz das novelas das nove, monopoliza de tal forma que meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... acabou, por ironia, ganhando a pecha de polêmico.
É todo aquele papo bonito, "contra o preconceito", "em prol das periferias", "pela verdadeira cultura", "pela geração de empregos", mas a gente vê que são discursos elitistas, por mais positivos, alegres e fabricantes de consenso que eles sejam.
Vamos ao exemplo de Sílvio Essinger, que passou pano no "funk" no livro Batidão: Uma História do Funk, do qual tirou um paralelo sem pé nem cabeça com o punk que ele abordou no livro Punk: Anarquia Planetária e a Cena Brasileira, que cheguei a ter em minha coleção.
Disse Essinger à equipe do Betway:
"O funk já contava com uma boa parcela de ódio muito antes de se falar em ‘haters’. Já nos anos 90, era incluído num pacote de música brasileira desprezível, inculta, junto com os também populares axé music e pagode romântico. Desde então, passaram por um processo de reavaliação. E nos anos 2000 ressurgiram, diante do senso comum, como expressões legítimas de uma cultura brasileira. Hoje, o funk tem mais de 30 anos de história, está arraigado no imaginário do brasileiro, formou público fiel e gerações de artistas".
Menos, menos.
Esses estilos popularescos não são expressões legítimas de uma cultura brasileira. São estilos comerciais, que com um arranjo de marketing se tornaram hegemônicos.
O que houve foi uma estratégia de cooptar intelectuais, famosos e outros agentes formadores de opinião para passar pano na mediocridade popularesca.
E vemos gente que, sob o pretexto da imparcialidade e da objetividade, como Sílvio Essinger e Mauro Ferreira, ficam complacentes com a mediocridade atroz da música popularesca.
Fica todo esse discurso falacioso, que mais parece propaganda enganosa, do tipo: "Compre o Sabão SOAP, que lava branquinho, branquinho".
Vejam, na mesma matéria do Betway, uma declaração do DJ Marlboro, que adota uma linguagem puramente empresarial:
"Quando fiz o ‘Funk Brasil’, em 1989, quase não lanço! O pessoal da gravadora queria usar o ‘Carioca’ no disco. Já tinham feito até um ensaio de capa com o nome ‘Funk Carioca’. Aí eu disse: ‘Não! Tem que ser ‘Funk Brasil’ porque o funk não tem que ficar resumido ao Rio de Janeiro. (...) O meu plano para o funk era que ele fosse um movimento nacional, com visibilidade internacional, para gerar emprego no Brasil inteiro. Queria que cada região colocasse características locais nas suas músicas, que espelhasse aquilo que as pessoas respiram, seu cotidiano, seu dia a dia. A cultura local está entranhada no funk".
A gente observa que esses discursos todos nada têm de realistas. São todos discursos que mais parecem de marketing empresarial, de matéria de press release, mas tudo isso se vende sob a falsa reputação de etnografia social, de ativismo cultural ou até mesmo sociologia poética.
Ninguém vai abrir o jogo e vai dizer que faz propaganda enganosa.
Eles não assumem sequer que o "funk" é queridinho da mídia venal. O "funk" está no mainstream desde 1990 e o pessoal faz vista grossa, achando que o gênero é boicotado pela mídia.
Ou, quando assume algum sucesso na grande mídia, trata como "obra do acaso", fruto da "genialidade" do gênero.
Tudo mentira, tudo enganação.
Fora desse mundo encantado dos ritmos popularescos, do "funk", do mito da população pobre feliz indo que nem gado para os galpões e gramados dos eventos popularescos ver seus ídolos, a realidade é bem mais dura.
Pessoas morando nas ruas, gente sem emprego, pobres em fila de hospital morrendo de Covid-19 por falta ou demora no atendimento, isso não aparece no "funk", na axé-music etc.
Não aparece sequer no "Bumbum Tantã" de MC Fioti, no qual se vê gente dançando e o funqueiro brincando de ser "cientista".
O pessoal vê o clipe e diz, da boca para fora, "Viva a Ciência". Mas nenhum benefício a Ciência recebe e nossos médicos se expõem ao Coronavírus e muitos morreram e morrem por causa da doença.
MC Fioti fez seu clipe, lacrou, transformou seu "Bumbum Tantã" em hype e viveu quinze minutos como "a próxima salvação da humanidade", junto a gente "legal" como Guns N'Roses, Marilyn Manson e Flaming Lips, todos também dotados de superpoderes divinos.
Depois, ele pegou seu dinheiro e usou para si. Os funcionários do Butantã dançaram o "Bumbum Tantã" e ficaram nisso: só receberam o cachê que mal dá para avançar nas pesquisas científicas, e só.
Enquanto a "pobreza feliz" se manifesta através desses pavorosos estilos popularescos que tomam conta das rádios "demasiado populares", mas controladas por ricas oligarquias, o povo pobre de verdade vive seus dramas.
Com desemprego e fome, sem moradia nem atendimento da saúde pública. Um povo pobre que morre dramaticamente, enquanto o rádio toca os alegres sucessos da canção popularesca, inclusive o "funk".
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