O ALCOOLISMO ERA DEFENDIDO PELA INTELECTUALIDADE PRÓ-BREGA COMO UM "AMIGO CONSOLADOR" DOS PROBLEMAS EMOCIONAIS DO POVO POBRE.
O discurso do "combate ao preconceito" foi uma coisa tão influente no desmonte da democracia brasileira quanto a Operação Lava Jato. O coitadismo de intelectuais como Paulo César de Araújo, Rodrigo Faour e o exótico Thiagsson - com visual fashion típico das barbearias descoladas de hoje em dia - não convencia como alternativa ao pensamento elitista, porque eles mesmos eram elitistas, no que se refere à defesa de uma imagem inferiorizada, porem "positivada", do povo pobre.
Afinal, eles estavam "muito bem" acompanhados, em suas narrativas "contra o preconceito", de gente dotada de discurso porralouca, seja um Milton Moura e um falecido Roberto Albergaria, na Bahia, seja um arrogante e jocoso Eugênio Raggi, em Minas Gerais. Mas o conterrâneo de Sérgio Moro, Pedro Alexandre Sanches, fazia sua peregrinação passeando pelas redações esquerdistas para impedir que os verdadeiros debates culturais fossem feitos.
Conforme esse elenco de intelectuais, descrito no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... (Amazon e Clube de Autores), não se podia discutir a cultura popular, com base no ditado, por ironia altamente discutível, "gosto não se discute". O que o povo pobre ouvia, fazia e acreditava, não se mexia, não se falava uma palavra conta. "Perder o preconceito" é aceitar tudo, ainda que de maneira pré-concebida, só porque, supostamente, "o povo gostava e sabia".
Esses intelectuais sabotaram o projeto progressista de Lula de tal forma que ele foi "abatido" politicamente, pelas sucessivas circunstâncias: difamação da mídia empresarial, armação jurídica da Operação Lava Jato, derrubada de Dilma Rousseff, cancelamento de progressos feitos ou mantidos por Lula, sua prisão arbitrária.
Daí que, para Lula voltar a governar o país, ele teve que abrir mão de boa parte de si mesmo. Teve que jogar às favas o processo democrático de diversidade competitiva na campanha presidencial, pregando uma tese de "democracia de um candidato só", extremamente duvidosa. Lula teve que negociar a retomada dos direitos políticos e o caminho para chegar à Presidência da República com a Faria Lima, e o petista teve que puxar o tapete dos concorrentes para vencer as eleições.
Lula, que completou ontem 100 dias de governo, comete erros sérios porque seu caminho ficou acidentado. Ele teve que fazer, no terceiro mandato, mais concessões à direita do que nos dois anteriores. A mídia progressista, ávida por verbas governamentais, mente dizendo que Lula, em seu atual mandato, está "mais esquerdista". Mas a verdade é que ocorreu o contrário, como os fatos mostram. Lula tem que fazer um meio-termo entre seu projeto progressista e os imites do neoliberalismo.
Esse quadro devastado teve a responsabilidade, sim, de Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, Michel Temer, Jair Bolsonaro e companhia. Isso é verdade. Mas o culturalismo vira-lata nunca assumido, sob a capa do "combate ao preconceito" - tão mentiroso quanto o "combate à corrupção" lavajatista - , também influiu, e muito, na degradação social, ainda que seus ideólogos fingissem "solidários" a Lula e Dilma Rousseff.
Boa parte dessa pregação em prol da bregalização cultural que, entre as principais finalidades, estava a de desmobilizar o povo pobre creditando o divertimento brega-popularesco como um "engajamento político por si só", sob a desculpa de "combater a sociedade careta com a provocação do mau gosto", visava sabotar o projeto progressista tirando o povo pobre do protagonismo cultural.
A ideia é inverter todo o discurso negativista que o sociólogo Jessé Souza fazia do ideal viralatista clássico, de Sérgio Buarque de Holanda - por ironia, pai de Chico Buarque, que se alinha à esquerda e é mais solidário à cultura popular de raiz que o pai historiador, embora demonizado pelos intelectuais pró-brega a partir do "filho da Folha" Pedro Alexandre Sanches - , que disse que o povo brasileiro era "só defeito, feiura e vergonha".
Ou seja, o discurso do "combate ao preconceito" buscava cruzar a perspectiva miscigenatória e positiva da obra de Gilberto Freyre com os aspectos inferiorizados narrados por Sérgio Buarque, e esta mistura de conceitos resultava na "positivação" dos aspectos negativos associados ao povo pobre.
Dessa forma, a ignorância e a baixa ou nula escolaridade eram creditados como "pureza espiritual", como se as favelas fossem "paraísos de Adão e Eva". Prostituição era vista como "empoderamento feminino". O alcoolismo como um "amigo consolador" das frustrações do povo pobre, em especial homens e, sobretudo, mais velhos. A vida do povo pobre, um "Carnaval permanente". O comércio clandestino e a pirataria eram tidos como "ações revolucionárias". As próprias favelas, depois convertidas em "paisagens de consumo" e "safáris humanos", eram exaltadas como "paisagens pós-modernas".
Criticar tudo isso era ficar à margem do pensamento esquerdista dominante. Durante anos, meu antigo blogue Mingau de Aço criticava o culturalismo pró-brega sozinho, enquanto a defesa da bregalização emporcalhava as páginas de Caros Amigos, Fórum, Carta Capital e Brasil de Fato, forjando um pretenso consenso entre as esquerdas de que a bregalização era "a verdadeira cultura popular".
Se eu quisesse ter mais seguidores, teria que elogiar o "funk" e acreditar em tolices como o fato da música "Xibom Bom Bom", sucesso de axé-music, ter sido "inspirada" na obra O Capital, de Karl Marx. Mas o Mingau de Aço foi um "patinho feio" da blogosfera de esquerda e minhas análises só repercutiram porque pude produzir uma grande quantidade de textos para que seus temas, virando palavras-chave no Google, chamassem atenção de um público relativamente maior.
Foi preciso haver a mudança de circunstâncias diversas, que deram no golpismo de 2016-2018, e aparecer conceitos como "pobrismo", "identitarismo cultural" e outros, além de críticas contra a parodização do povo pobre - a "verdadeira" imagem das periferias do "combate ao preconceito", a "periferia" bregalizada de novelas e humorísticos - para o discurso pró-brega perdesse, se não a total validade, pelo menos a força persuasiva de antes.
Os ideólogos da bregalização mudaram de assunto, sua área de atuação não é mais a mídia de esquerda, mas os espaços mais conservadores, embora moderados: UOL (da Folha de São Paulo), a Rede Globo e os jornais O Globo e Extra, as revistas de fofocas, canais diversos como SBT, Record, Band e Jovem Pan. E sem fantasiar de "etnografia" a defesa apaixonada da bregalização cultural, que sempre foi a tônica do tal "combate ao preconceito".
O "combate ao preconceito" travou discussões valiosas sobre os problemas da cultura popular e resumiu a evolução social do povo pobre aos aspectos econômicos - já paliativamente atendidos pelo Bolsa Família e pelos aumentos salariais, com uma fluência de conquistas sociais maior do que hoje em dia, embora distantes dos progressos da Era Vargas ou do que prometiam Juscelino Kubitschek e João Goulart em seus tempos - , pois culturalmente a norma era manter a precarização, sob a desculpa de serem "qualidades inerentes do povo pobre".
O que isso significa? A retórica do "combate ao preconceito" queria "ressignificar" a pobreza, alterando da sua condição verdadeira de problema social e tragédia humana para uma pretensa identidade sociocultural ou mesmo, pasmem, um "ideal de vida". Era um discurso hipócrita, mas que virou consenso nas esquerdas, devido ao mimetismo narrativo da defesa da bregalização cultural forjar uma retórica "revolucionária", reproduzindo clichês do imaginário do combativismo de esquerda.
Ver que até monografias e documentários cinematográficos pregavam essa narrativa cheia de juízos de valor e de artifícios panfletários é constrangedor. E toda essa pretensa exaltação do povo pobre - desde que o povo pobre permanecesse em sua condição inferior - abriu o caminho que se deu ao golpismo de 2016-2018, prejudicando até a intelectualidade pró-brega, que, atirando no "preconceito", acabaram ferindo gravemente o Ministério da Cultura e quase matando o Brasil como nação.
Precisamos nos lembrar dessa pretensa campanha, que só fez degradar a cultura popular brasileira e contaminou até os ouvidos dos jovens mais instruídos, porém vulneráveis à breguice dominante que parece "mais divertida" do que a MPB autêntica que os universitários de 50 anos atrás ouviam.
Ver hoje que os brega-popularescos expulsaram a MPB e o Rock Brasil de seus espaços, rombando os seus nichos de mercado, é triste. Ver nomes como Michael Sullivan, Leandro Lehart, Waldick Soriano, Benito di Paula, Daniel, Chitãozinho & Xororó, Bell Marques, Joelma, É O Tchan e outros tidos como "sofisticados" ou "vanguardistas" é de envergonhar, pois eles, se têm algum espaço na música brasileira, deveria ser dentro de seus limites de um comercialismo sem compromissos artísticos nem culturais.
Eles não podem, sob a desculpa do "combate ao preconceito", invadir os espaços da MPB e do Rock Brasil, entrando nas universidades, enquanto fazem a trilha sonora da espetacularização da pobreza, concebendo um "povo pobre" para o voyeurismo sociológico da classe média de intelectuais "bacanas", gente que se acha "mais povo que o povo" mesmo vivendo uma vida confortável nos padrões da elite do atraso.
Devemos ir muito adiante dos clichês analíticos de um "culturalismo sem cultura", porque a culpa deve ir além dos explícitos manifestantes do reacionarismo raivoso e intolerante, pois há muita "gente legal" que também contribuiu, tanto quanto Moro e Bolsonaro, para a degradação do nosso país, e isso inclui muita "gente boa" com pose de coitadinha que andou enganando a sociedade democrática.
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