O Brasil pós-Bolsonaro é marcado por um grande medo, por parte das forças ditas "democráticas" ou "progressistas", da manifestação do senso crítico, pois o chamado senso comum, no nosso país, exige que estejamos de acordo, ou criticando nos limites mais inócuos possíveis. Há uma lógica algorítmica em que a polarização Sim x Não agrupa de maneira binária esquerda/democracia e direita, respectivamente.
Paciência. O Brasil ainda vive um padrão construído há 50 anos, quando se recomendava que, para alcançar o desenvolvimento econômico, é necessário ficar calado, dizer sempre "sim" e não fazer questionamentos. Em tese, todos defendem o livre e amplo debate, mas na prática o senso crítico é visto por muitos como o anúncio do fim do mundo.
Nos tempos do não-raivismo pós-Bolsonaro, é esse o sentimento que prevalece, quando a situação ainda piora quando o paradigma de "imparcialidade" e "isenção" é associado a figuras socialmente sombrias como Sérgio Moro e Monark. Ou seja, muitos têm medo do senso crítico para não causar problemas, mas há o peso do pensamento conformado naufragar nos pântanos do obscurantismo.
O Brasil, evidentemente, não vai para o Primeiro Mundo. Não apenas porque soa patético crer que nosso país vire potência devido à "alegria do povo brasileiro" ou das "lições de paz e fraternidade dos brasileiros ao mundo". Um país de Primeiro Mundo não se faz somente com cidades arrumadinhas, tecnologia de ponta, economia em ordem, consumismo pleno, entretenimento amplo e diversificado e uma estrutura político-institucional saudável, ou seja, a chamada legalidade democrática.
O Brasil está culturalmente devastado, mas esse problema não é percebido pela maioria das pessoas, mesmo aquelas com algum nível de conhecimento. E isso se torna ainda mais problemático, uma vez que o novo normal, desde abril de 1964, virou uma gradual bola de neve de retrocessos de toda ordem, que as zonas de conforto do hábito rotineiro fizeram aceitar de tal forma que certas catástrofes passaram a ser resignificadas, tornando-se "coisa boa" e até, pasmem, deixando saudades em certos "isentões" de plantão.
A bregalização cultural, seja na música, seja em aspectos como as favelas - antiga tragédia habitacional hoje convertida em suposta identidade sociocultural - , são exemplos disso, num país que parece perseguir o velho e o obsoleto, como se o Paraíso de Adão e Eva brasileiro fosse o Século XVII do período colonial.
Os anos 1600 da colônia brasileira, assim como, por exemplo, o Segundo Império e a Era Geisel da ditadura militar, são vistos pela parcela ao mesmo tempo privilegiada e influente na nossa sociedade - a classe media abastada, segundo critérios de Jessé Souza - como períodos de aparente equilíbrio social, dentro dos valores dominantes de estabilidade.
Nessas épocas, se pensava em padrões menos rígidos de opressão, conforme o nível social de cada época, para também evitar ou tentar evitar tensões sociais mais profundas. No período de Geisel, que inspira o Brasil das últimas décadas - descontado um hiato em meados dos anos 1980, quando quiséramos retomar o caminho interrompido em 1964 - , herdamos a ilusão de criticarmos menos e aceitarmos mais, sob a desculpa de sermos vistos como "socialmente maleáveis" e "emocionalmente equilibrados".
O atual governo Lula, diferente dos dois primeiros manados - nos quais havia a leve herança do legado de João Goulart, sabotada no âmbito cultural pela intelectualidade pró-brega (hoje com problemas de se expressar na mídia de esquerda, concentrando seu raio de ação em veículos midiáticos convencionais como a Folha, Caras / Contigo e a Rede Globo) - , está mais conservador, buscando proximidade com o neoliberalismo, combinado apenas com concessões sociais que, na teoria, se anunciam como fortemente esquerdistas. Mas essas concessões não são mais do que pálidas sombras das incipientes realizações de 2003-2010, ainda bem menos corajosas que nesses outo anos.
A ilusão binária de que o "sim" é sempre de esquerda / democracia e o "não" é sempre de direita pode fazer bem ao mercado, agregar pessoas com mais facilidade e trazer monetização e lacração maiores na Internet. Mas ela revela impasses e dilemas posteriores que geram problemas sérios a médio prazo. Como no mercado de trabalho, em que se joga fora um talentoso profissional por ele ter senso crítico considerado "incômodo" e se aceita um profissional incompetente "de bem com a vida" que, de tanto "interagir com os colegas", acaba descumprindo em boa parte o desempenho de trabalho necessário.
Muitos se esquecem que, se não fosse o senso crítico, aquela "mania insuportável de reclamar", a humanidade estaria presa em estágios mais primitivos. Se evitássemos o senso crítico afiado, o mesmo que faz muitos serem vistos como "chatos", muitas injustiças sociais teriam sido mantidas em prejuízo da sociedade, só porque elas foram suportadas por sorrisos complacentes ou por alguma resignação feita supostamente para evitar incômodos.
Imaginamos que o pior resmungão é aquele que só fica reclamando ou que, mesmo numa mensagem alegre, mostre algum ponto ácido em um comentário. Grande engano, conforme já foi escrito aqui neste blogue mas merece explicação em outro texto para outra oportunidade. O pior resmungão não é o que reclama muito, pois há os que reclamam o tempo rodo com razão. O pior resmungão, o pior queixoso, é aquele que reclama pouco, mas sem razão, daqueles que reclamam demais com motivo, pois o pior resmungão quer um mundo onde todos digam "sim" e sorriem até quando sofrem uma tragédia.
Se esquece que os maiores humanistas sempre agiram com muito senso crítico para denunciar a opressão, o descaso e o egoísmo humano. Em seu tempo, eles eram "chatos" e tão "insuportáveis" que eram várias vezes punidos pela morte. Por outro lado, o "sim" sorridente, amigável e simpático, manifesto sem raiva e de maneira cordial, não raro tornou-se cúmplice da opressão, do roubo, do massacre, da traição.
Hoje há a ilusão de que o senso crítico é "bolsonarista" e a conformidade é "democrática". A tolerância com os intolerantes, a liberdade para os abusadores, tudo isso norteia um país como o Brasil, sempre com sua mania de buscar na marra o ingresso rápido ao Primeiro Mundo, mesmo que seja um "primeiro mundinho" de mentira, com suas réplicas de cidades famosas dos EUA e Europa para o consumismo recreativo de uns 30% de abastados, a elite do atraso que não quer ser conhecida por este nome.
Um Primeiro Mundo cosmético, de mentirinha, quase um primeiro mundinho de brinquedo. Um Brasil politicamente correto, um "milagre brasileiro" sem os aspectos desagradáveis dos anos de chumbo, que só resolve as desigualdades de forma paliativa, de parte de uma elite "esclarecida" e "iluminada" que se acha dona da verdade, do povo pobre e até do mundo.
Daí que, infelizmente, senso crítico é sinônimo de mau humor. O que significa que, para o chamado senso comum, "legal" é "tomar no cool" sendo arrastado por um trio elétrico, cultuando "médiuns" pretensamente filantropos, sentindo obsessão por uma bola no gol na esperança dos médicos recomendarem tomar cerveja no café da manhã.
Em todo caso, se resolve as desigualdades sociais dando a famílias pobres um pequeno saco de mantimentos, sopinhas para moradores de rua ou pata miseráveis e doentes alojados e reduzindo o preço da carne com apenas um real a menos. E aí a classe média do atraso, agora convertida em "esquerda democrática", vai comemorar esses precários benefícios gastando seus dólares excursionando em Barcelona, enquanto não ficam prontas as réplicas da cidade espanhola no litoral nordestino.
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