Ontem, um idoso ouve rádio que toca música brega-popularesca, que agora é alvo de uma onda nostálgica que pescou em cheio um público movido à memória afetiva do passado. É um processo que parece espontâneo, dentro de um cenário aparentemente democrático e de uma população pretensamente descarregada do poder midiático, mas abertamente dependente dele.
Um nome como a canastrona dupla Chitãozinho e Xororó, que eu e meu irmão tivemos a paciência de aturar no último Reveillon da Avenida Paulista - ausente de opções musicais de qualidade - , que deveria ser reconhecido como os primeiros deturpadores do cancioneiro caipira, que se tornou o breganejo das últimas décadas, é tido como um dos últimos da música caipira de raiz.
Há uma tendência de legitimar canastrões musicais do passado, beneficiados por lembranças agradáveis do passado, o que faz com que, erroneamente, se atribua genialidade aqueles intérpretes que apenas serviram de trilha sonora para momentos felizes das vidas das pessoas. É o solipsismo tentando se passar por critérios artísticos e culturais, em mal disfarçado juízo de valor de caráter bastante subjetivista.
É mais ou menos como vender um sabão em pó com a promessa de que ele deixa as roupas sempre brancas e remove facilmente as manchas mais resistentes. A música popularesca agora tende a sepultar a MPB e a antiga música popular de raiz (como aquela que o CPC da UNE queria resgatar, há seis décadas), por motivos que parecem, para muitos, convincentes.
Hoje a música popularesca é "divertida" ou "toca fundo na emoção". Mas tudo isso são sensações produzidas por uma narrativa que vai além do simples artifício do antigo jabaculê radiofônico. Afinal, se as FMs hoje focalizam seu jabaculê no futebol, o jabaculê musical teve que buscar outros meios para introduzir no inconsciente coletivo uma perenidade postiça, ou seja, um status "superior" que, em verdade, nunca teve nem terá.
Esse jabaculê investe em inserções maciças em atrações de TV, na propaganda disfarçada de etnografia em teses acadêmicas, incluindo a choradeira do "combate ao preconceito", tudo para "penetrar" na emotividade e nos instintos de um público mais exigente, enquanto busca também a legitimação pela elite intelectual e pelos chamados formadores de opinião.
São novos espaços de apoio que são comprados para legitimar a música popularesca e torná-la totalitária. Não se trata de dar o "reconhecido valor" aos ídolos popularescos lotadores de plateias e vendedores de discos. Trata-se de ampliar mercados, de atingir públicos mais selecionados.
É, portanto, uma estratégia de marketing, um truque comercial. E isso vale até para ídolos popularescos esquecidos, quando fingem ser anticomerciais visando a captação de verbas estatais ou a inscrição em eventos de "viradas culturais" promovidos pelo poder público. Pois até isso é estratégia de marketing, pois no apertado circuito da música comercial brasileira, a música popularesca, não há lugar para todo mundo.
Assim como o comércio, em todo Natal, tem que fazer crer que o Papai Noel que está recebendo a criançada numa loja veio de longe, do Polo Norte, o ídolo popularesco esquecido precisa enganar a população se vendendo como alguém que "faz música sem interesses comerciais".
Vivemos uma época de terraplanismo cultural, em que a geração Tik Tok tenta inverter os conceitos de comercial e não-comercial, visando desqualificar artistas genuinamente talentosos com mais tempo de estrada, ao passo que tenta fazer os ídolos comerciais se tornarem mais "duradouros".
E isso acaba isolando a música de qualidade, que, esta sim, vive o mais perverso, impiedoso e intolerante processo de discriminação, mais intenso e culturalmente sufocante do que a suposta discriminação dos idolos popularescos pelo público mais elitista.
A aceitação social da bregalização musical pela alta sociedade, pela classe média abastada e pelas elites intelectuais "cansadas de ouvir MPB", mostra que os interesses dessa blindagem que faz a música popularesca.
Em mais uma vez, é a elite do bom atraso, com seu viralatismo cultural enrustido, que tenta fazer seus interesses privados prevalecerem como "públicos", concebendo um "verdadeiro Brasil" que nada tem de verdadeiro, e apenas está voltado a garantir a paz social postiça mas sólida bastante para assegurar a riqueza exorbitante dos agentes empresariais envolvidos. Um Brasil para poucos sob o consentimento servil de muitos.
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