O viralatismo cultural brasileiro não se limita ao bolsonarismo e ao lavajatismo. As guerras culturais não se limitam às propagandas ditatoriais ou de movimentos fascistas. Pensar o viralatismo cultural, ou culturalismo vira-lata, dessa maneira é ver a realidade de maneira limitada, simplista e com antolhos.
O que não foi a campanha do suposto "combate ao preconceito", da "santíssima trindade" pró-brega Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna senão a guerra cultural contra a emancipação real do povo pobre? Sanches, o homem da Folha de São Paulo, invadindo a imprensa de esquerda para dizer que a pobreza é "linda" e que a precarização cultural é o máximo".
Viralatismo cultural não é só Bolsonaro, Moro, Trump. É"médium de peruca", é Michael Sullivan, é o É O Tchan, é achar que "Evidências" com Chitãozinho e Xororó é um clássico, é subcelebridade se pavoneando até no exterior, é achar que Xibom Bombom é hino socialista, é achar que o trap é o "Santo Graal" da música brasileira.
Muito do viralatismo cultural é relacionado às "boas coisas" da vida. Coisas "bem legais" apreciadas pelos brasileiros médios, mas que passam longe da gramática da raiva, por isso se dispensa o rótulo de viralatismo cultural, apesar das caraterísticas gritantes.
Por exemplo. Na música estrangeira, o viralatismo é aberrante, não só pela obsessão de um mercado musical dominante no nosso país, no qual se enfatiza a imitação do pop estadunidense, mesmo diluído em pastiches de ritmos populares brasileiros. Notemos que, no chamado "pagode romântico", há elementos copiados da soul music. No "sertanejo", é o som tex-mex da country music e do mariachi. No "forró eletrônico ", são os ritmos caribemhos misturados com disco music.
O próprio "funk" já é calcado no som de Miami, sua "brasilidade" é conversa para o gado dormir. E já se tem a franquia do "funk ostentação" paulista, o trap, de um derivado do gangsta rap dos EUA cujo único diferencial brasileiro é o uso de batida com som de lata de ervilha.
Mas até para apreciar a música estrangeira propriamente dita, a situação é lamentável. A submissão ao hit-parade é de níveis bovinos evidentes, de tal forma que você sabe de antemão qual a música de fulano que faz mais sucesso entre os brasileiros. E a influência, por incrível que pareça, é bem brasileira, pois, apesar de 99% dos sucessos musicais gringos vingarem por aqui, a quase totalidade deles se deve a representação brasileira das editoras de copraite musical aqui atuantes.
Por isso é que, por melhores e geniais que sejam XTC e Ride, duas fabulosas bandas britânicas, elas não vingam no Brasil porque não interessa ao editor representante no Brasil investir. O som shoegazer fervia na Grã-Bretanha em 1990 e 1991 e o que se lançou de "novo" no Brasil? Um indie dance fajuto do Jesus Jones, espécie de resposta careta e medíocre ao Happy Mondays?
Daí que só no Brasil mediocridades musicais estrangeiras são supervalorizadas. A verdade é que esses nomes contam com um poderoso lobby de editores, e o copraite custa baratinho. Por isso um pastiche de Men at Work chamado Outfield, do sucesso "Your Love", só é "genial" no Brasil. O editor brasileiro compra os direitos de divulgação do artista e divulga adoidado nos canais mais influentes.
Daí a supervalorização de nomes que vão de Johnny Rivers ao Double You, que só são "classicos" dentro das perspectivas da sociedade jeca, atrasada e provinciana que é a brasileira. E isso faz com que, de maneira constrangedora, a música "Do You Wanna Dance?", composição do cantor e intérprete original Bobby Freeman e popularizada, nos EUA, pelos Beach Boys, ser tratada no Brasil como "canção autoral" de Johnny Rivers, que era apenas um crooner de covers.
Mas aqui até nomes com notável sucesso lá fora são aqui valorizados como se fossem mil vezes melhores do que realmente são. Guns N'Roses e Michael Jackson são exemplos de nomes que na verdade estão longe de serem a milésima maravilha do mundo e são endeusados a níveis extremos e bastante cegos pela sociedade vira-lata brasileira.
Sabe-se que a banda de Axl Rose é supervalorizada por representar, para um público brasileiro acostumado com o precário som popularesco e sua estética grotesca, os clichês mais fáceis do rock'n'roll, desses clichês caricatos mas de compreensão bastante acessível. Mas isso faz com que se exagere a reputação do Guns N'Roses por aqui, pois a banda de rock farofa aqui é considerada erroneamente como "rock classico", por um público com preguiça de ouvir rock clássico de verdade.
E Michael Jackson? O "rei do pop" nunca foi genial, mas já teve bons momentos e era promissor no começo da carreira. Só que no Brasil Michael é considerado "coisa de outro mundo", supervalorizado a níveis preocupantemente exagerados. É a supervalorização da supervalorização de um astro pop que nunca foi, de fato, uma grande maravilha.
Mas vamos combinar que o endeusamento de Michael Jackson no Brasil, que é tratado como um misto de Apolo com Zeus do pop mundial, se deve aos grandiloquentes videoclipes cinematográficos dos sucessos do finado cantor, principalmente as músicas de seu álbum mais vendido, Thriller, de 1982.
Ou seja, trata-se de uma falta de compreensão da mensagem, um sintoma da burrice e do viralatismo cultural que corre nas veias sanguíneas dos brasileiros em geral. Maa isso contagia até quem tem algum conhecimento a mais, todavia se sentindo tentado a embarcar na espiral do silêncio, daí que até certos especialistas musicais, mesmo os roqueiros, se sintam induzidos a reconhecer, em Michael Jackson, uma genialidade e uma superioridade artística que o falecido cantor nunca teve, mesmo em momentos mais inspirados.
Nos EUA, Michael Jackson passou por um período de decadência, dos anos 1990 para cá. Vivia como uma subcelebridade, daí os escândalos como expor um bebê na janela. Fora acusações de pedofilia, que rendem inquéritos póstumos na Justiça. Mas, para o público vira-lata brasileiro, que vê muito os tais "riélite chous", tanto faz. Michael Jackson lhes é genial até nos factoides. Faz parte neste Brasil atolado na areia movediça do atraso cultural.
Comentários
Postar um comentário