Desconfie sempre de quem fala demais e faz menos, pois quem realmente faz não precisa ficar dizendo a todo momento. No caso da palavra "democracia", temos que desconfiar da frequência e do oportunismo com que Lula utiliza essa palavra, como ocorreu ontem em mais uma festinha política para promoção de um político que já foi admirável, mas desde 2021 anda decepcionando por errar muito, e errar feio.
O evento ocorrido em Brasília, denominado "Democracia Inabalada", soa mais uma conversa para boi dormir, porque a "democracia" do "Brasil único", do "país de um só povo", só serve na verdade aos 30% do eleitorado que corresponde à elite do bom atraso, misturando uma esquerda identitarista, domesticada e pequeno-burguesa com adesões da direita moderada e neoliberal que agora jura de pés juntos que "passou a gostar" de comunistas, depois de seus avós esbanjarem golpismo histérico.
Aparentemente bem intencionado, o evento, que incluiu a presença de membros dos Três Poderes e militares legalistas, foi claramente protagonizado pelo presidente brasileiro, que se destacou pelo seguinte trecho do seu discurso:
"Se a tentativa de golpe fosse bem-sucedida, muito mais do que vidraças, móveis, obras de arte e objetos históricos teriam sido roubados e destruídos. A vontade soberana do povo brasileiro expressa nas urnas teria sido roubada, e a democracia teria sido destruída. Não há perdão para quem atenta contra a democracia, contra seu país e contra o seu próprio povo. O perdão soaria como impunidade. E a impunidade, como salvo conduto para novos atos terroristas".
Claro, é consenso e é indiscutível a defesa da democracia. Mas lembremos que quem realmente defende não fica dizendo o tempo todo. Quem faz, quem pratica não fica dizendo que faz e pratica o tempo todo. Apenas faz. Palavras não podem substituir os atos nem estar acima deles. Soa chato a pessoa dizer demais que faz, que tem que fazer etc, quando se vê que o que diz fazer tem pouco reflexo na prática.
Lula, acreditando na "democracia do eu sozinho", em que ele é que decide e o povo que vá brincar e festejar o Carnaval identitário de todo dia, descumpriu os princípios democráticos quando, na campanha eleitoral, se recusou a enfrentar a competitividade eleitoral. Lula, que tanto se diz competitivo, só queria enfrentar Jair Bolsonaro, mas se recusou a debater com os demais candidatos, e faltou a dois debates muito importantes, o do SBT e o da Record, marcando dois comícios de propósito para chocar horários.
A democracia e sua ferramenta legal maior, a Constituição Federal de 1988, asseguram a competitividade eleitoral. É obrigação de todo candidato admitir isso, não existe democracia de um candidato só. Lula foi antidemocrático em sua campanha eleitoral e inventou o troço de "eleição plebiscitária", com seu fã-clube de jornalistas até competentes, mas hoje estão no modo recreação, inventando que quem não votasse em Lula, mas em qualquer outro candidato, "estaria votando em Bolsonaro".
Isso é um jogo sujo. Lula se considera o "dono" da democracia, como se ele fosse o inventor da mesma. Temos que concordar com Ciro Gomes, o injustiçado da campanha eleitoral, quando diz que a "Democracia Inabalada" é um "evento de campanha do PT".
“Os atos de vandalismo e de depredação do patrimônio público, ocorridos por insubmissão política aos resultados eleitorais, devem ser punidos exemplarmente, principalmente a partir dos grandes responsáveis pelo seu financiamento e motivação. Explorar politicamente o fato deplorável é igualmente desonesto e é o que está acontecendo”, disse Ciro, em sutil crítica ao presidente Lula.
Em vez de governar como um verdadeiro administrador, coisa que até fez de certa maneira nos dois mandatos anteriores, Lula agora prefere fazer marketing. Querendo se apropriar da palavra "democracia", Lula é simplório e medíocre em seus argumentos, como foi simplório e medíocre nas suas inúteis viagens ao exterior, quando preferiu a política externa à verdadeira reconstrução do Brasil.
É evidente que o personalismo de Lula se sobressai mais do que qualquer garantia aparente do processo sociopolítico democrático. Independente da democracia ser garantida ou não, o que está em jogo, como nos discursos nos eventos de cúpula internacionais do ano passado e do retrasado, é a projeção pessoal de Lula.
O presidente brasileiro se aproveita do culto à personalidade e quer ser o "dono" da democracia. A elite do bom atraso é que adora isso, porque gosta de privatizar as virtudes humanas. A "caridade" é privatizada (como se observa na figura gourmetizada de um "médium" charlatão e reacionário que bradou para todos os cantos, por meio de um programa de TV, que a ditadura é que valia a pena), o "amor" é privatizado, a "paz" é privatizada.
Só o "ódio" é que é público. Daí o bolsonarismo, com seu raivismo de vários rostos, várias caras, que vão do lúmpen revoltado ao policial brutamontes, do influenciador ressentido à dondoca hidrófoba, do vaqueiro metido ao neopentecostal aterrorizado. Todos pregando o reacionarismo perigoso e ameaçador, prontos a cooptar os excluídos da festa lulista.
Excluídos da festa lulista? Sim, excluídos desse "Brasil único", dessa "democracia" que se volta mais a pessoas que passam a madrugada bebendo cerveja e berrando e rindo alto incomodando a vizinhança do que os trabalhadores que precisam dormir cedo. Excluídos que vão do proletariado raiz aos solteirões caseiros, gente que prefere a ciência ao futebol, que ouve músicas de melhor qualidade, que não cultuam "médiuns" picaretas e seu assistencialismo fajuto, gente que prefere se emocionar de verdade, refletir criticamente e afirmar que embalos de sábado à noite regados a cerveja não são tudo na vida.
Um Brasil não necessariamente festivo, mas mais racional e emotivo, mais sensível, mais humano, esse Brasil foi excluído da festa identitária do lulismo, cuja "diversidade democrática" não passa de um pequeno mundo que gira em órbita em torno de Lula, que se considera o "centro de tudo", a ponto de seus tietes acharem que o mundo estava paralisado e só voltou a girar quando o petista voltou a ser presidente do Brasil.
Triste ver que a "democracia" foi privatizada. Uma ideia que se tornou propriedade de um político que agiu contra a democracia ao querer ser o "candidato único", para realizar a "democracia do eu sozinho", em que ele decide e o povo brasileiro é aconselhado a só festejar, tomar cerveja e dançar as abomináveis canções popularescas. Com um quadro desses, a democracia está longe de ser inabalável.
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