Com toda certeza, Jair Bolsonaro é um político nefasto cujo mandato foi um dos mais desastrosos e nocivos da História do Brasil. Não há como contestar sua figura maléfica e seus quatro anos de muita má vontade com a coisa pública e com o único interesse de apenas favorecer, social e politicamente, amigos, familiares, neopentecostais e milicianos.
Mas vamos prestar atenção ao fato de que ele é apenas parte de um longo processo de degradação social, não podendo ser o único responsável pelo golpe. Aliás ele não era autor do golpe político de 2016, pois os "roteiristas" eram outros. Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, Eduardo Cunha e Michel Temer foram quem escreveu a tragicomédia que derrubou Dilma Rousseff e arrasou o Brasil.
Bolsonaro, não. Ele teve uma performance destacada nesta trágica comédia de maus costumes, mas ele encenou um roteiro alheio. Não há como atribuir copyright a um autor de estória de outra autoria, tendo sodo apenas um intérprete.
Jair Bolsonaro nunca teve vontade para a política. Como deputado federal, ele foi mais um turista, um reles "visitante". Seu trabalho parlamentar foi um dos piores que se pode imaginar de um membro do Poder Legislativo.
Infelizmente, Bolsonaro foi atribuído, nos últimos meses, como responsável por todos os pecados cometidos pelas elites dominantes e opressoras da nossa história. Vai que ele se torna culpado até pela escravidão abertamente praticada até 1888, pois agora tudo que é mal virou sinônimo de Bolsonaro.
As narrativas oficiais do Brasil mudaram mais uma vez e não buscam a verdade dos fatos. Até porque o exercício do pensamento crítico, hoje, enfrenta uma rejeição social que nem nos piores tempos da ditadura militar havia. Naqueles tempos, ter senso crítico dava cadeia, tortura e morte, mas na sociedade havia um estímulo que hoje não existe mais.
Hoje, oficialmente, burguesia não existe mais. Tudo que representou colonização, bandeirantismo, fidalgos, escravocratas da Casa Grande, oligarquias, golpistas, anticomunistas e reaças em geral está associado ao bolsonarismo. Tudo agora se reduz a um clubinho de milicianos, pastores, dondocas, sociopatas, famosos fracassados, pessoas ressentidas em geral.
Mas se a gente observar com muita atenção, a sociedade "esclarecida" que hoje apoia cegamente o governo Lula, em verdade, não foi prejudicada pelos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro. Isso é incômodo de dizer, mas é, sim, fato. A "boa" sociedade se sentia incomodada com os dois ex-presidentes, mas sempre manteve sua boa vida de classe privilegiada enrustida.
Afinal, essa classe privilegiada, a elite do bom atraso, compartilha com os bolsonaristas muitos dos velhos valores culturais, lúdicos, religiosos, moralistas dos tempos da ditadura, somente descontada a cosmética do raivismo, mais caraterística dos extremo-direitistas.
Mas coisas como a bregalização cultural, a idolatria aos "médiuns", o fanatismo pelo futebol, a meritocracia do emprego e do ganho monetário (do qual inclui desde uma mal disfarçada ganância financeira a valores como o etarismo no mercado de trabalho), tudo isso são valores próprios do "milagre brasileiro" e da Era Geisel, mas que tentam sobreviver a qualquer preço nos tempos atuais de democracia formal.
Os lulistas e similares se comportam de maneira não muito diferente da sociedade conservadora propriamente dita, sendo apenas uma elite do atraso em seu modo "positivo", com seu viralatismo que nunca é devidamente assumido, pois os "brinquedos culturais" da direita civilizada, adotada de maneira bastarda pelas esquerdas, lhes soam como "coisas boas da vida", daí a recusa de reconhecer ídolos bregas, craques fanfarrões, funqueiros, "médiuns", mulheres-frutas etc como símbolos de viralatismo cultural, quando esse viralatismo está mais do que explícito nesses fenômenos, também.
Por isso, para evitar todo esse ônus de uma elite "progressista" e "moderna" capaz de, no seu juízo de valor, dizer que as favelas "são lugares lindos de se ver" e que a prostituição é "símbolo de empoderamento feminino", todos os pecados dessa classe cujos antepassados eram genocidas, exploradores, torturadores e trapaceiros, portanto, foram deixados no colo de Jair Bolsonaro, a ponto da narrativa do golpe de 2016 praticamente desaparecer.
Dessa forma, a mesma burguesia que vê o povo pobre como um bando de animais a serem domesticados e transformados em "bichinhos do Instagram" procura parecer "positiva", evitando a gramática raivista e a repetição dos pecados e da histeria dos seus antepassados.
Essa "boa" sociedade não mudou na sua essência, pois mantém valores caquéticos em termos de valores de solidariedade, mérito e evolução humana, e seus heróis são essencialmente os mesmos de 50 anos atrás. Só que evitam o discurso de ódio, podendo soar conservadoras com uma fala pretensamente "racional", como se vê nos apoiadores de Lula nas redes sociais, depois do erro de reacionários enrustidos, mesmo os pretensos esquerdistas, embarcarem no discurso de ódio em 2005-2007.
Como forma de sobreviver ao naufrágio bolsonarista, temos uma burguesia que se acha "mais povo que o povo", que anda de carrões SUV, desperdiça dinheiros com cerveja em excesso e cigarros, trata o pobre com uma misericórdia manchada de hipocrisia paternalista, que credita o altruísmo como um subproduto da velha religiosidade assistencialista.
Essa burguesia, invisível a olho nu, procura caprichar no mimetismo de parecer gente simples e boicota textos que expressem algum pensamento crítico, porque esses textos denunciam a hipocrisia dessa própria classe, que precisa festejar o momento atual de privilégios plenos dessa elite narcisista cujos avós bradaram pela queda de Jango. Mas agora seus netos, para parecer bem na fita, fazem a boa encenação do "bom esquerdismo", fugindo do naufrágio que fez afundar o barco furado do bolsonarismo.
Bolsonaro, feito um vilão de desenho animado, parecendo uma versão idosa do boneco Chucky do filme de terror, pode ser, sim, um político abominável e sem um pingo de vocação para governar sequer uma assembleia de pracinha do interior, mas devemos também admitir que a única responsabilização dele e seus afins pelos pecados das elites é uma manobra para que os verdadeiros opressores tentem sobreviver às mudanças dos tempos. O bolsonarismo é uma coleção de anéis que a burguesia jogou fora para salvar seus dedos.
E aí Jair Bolsonaro e afins - podem ser seus quatro filhos, ou Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, Carla Zambelli, Silas Malafaia etc - se tornam os únicos a pagar os pecados de mais de 500 anos cometidos pela burguesia, enquanto os verdadeiros burgueses, espertos, vão logo vestindo a fantasia de "gente simples" e se esconder no carnaval identitário e neoliberal dos dias de hoje.
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