Salvador até tentou evoluir no urbanismo, ainda que calcado na imitação de São Paulo. Seria menos mal se não fosse a mentalidade provinciana e cruel que transforma a capital baiana no inferno astral para quem quer obter um emprego digno visando uma qualidade de vida a melhor possível.
Enquanto as circunstâncias fazem com que justamente os melhores intelectuais baianos falecessem, deixando a capital baiana órfã de boas ideias, a mediocridade segue crescendo tanto que dois ritmos popularescos, o arrocha e o piseiro, marcados pela gritante precarização artístico-cultural, tiveram facilidade de se expandir em mercados no Brasil inteiro.
Me lembro que, lendo a coluna Tempo Presente, do jornal A Tarde, dizia-se que a Bahia é o Brasil levado às últimas consequências. E é verdade. E vemos o quanto há muita farsa, muitas desigualdades sociais e muitos oportunistas bancando os bonzinhos por nada.
A capital da Bahia tornou-se a capital atrasada de um país atrasado que é o Brasil. E isso é grave, em se tratando da cidade que já foi a primeira capital do nosso país. E, depois de surtos de modernidade cultural nos idos de 1950-1964, Salvador sucumbiu a uma decadência da qual nunca se recuperou.
E isso envolve vários aspectos.
Salvador tem maioria de homens na sua população, mas os dados oficiais teimam em dizer o contrário. E olha que o Censo de 1960, anterior à ditadura, foi o último a confirmar a maioria masculina. Fica mais agradável definir a Cidade DO Salvador em "cidade-mulher" porque erotiza a paisagem praiana e o clima veraneio, garantindo assim o turismo sexual que, vamos combinar, movimenta muita grana por fora.
E isso esconde um racismo cruel. A maioria dos homens que vovem na capital baiana é negra e pobre e ainda está creditada, como residência, às cidades do interior baiano de onde vieram. O mais grave é que esses homens não podem ser sequer números estatísticos e já sofrem a humilhação das elites boêmias que não consideram humanos esses homens, que evitam a vida noturna porque precisam dormir para trabalhar no dia seguinte.
Existe o perverso eufemismo, dito pela mulherada biriteira, de que "falta homem em Salvador". Entenda-se "homem" como o perfil estético de Cauã Reymond, por exemplo. Ou seja, se o sujeito não se enquadra nesse padrão estético, ele não é "homem", não aparece nos dados do Censo soteropolitano, não é gente, só porque é "preto, feio e miserável".
E vemos o quanto há uma "revolta dos Malês" pelo avesso, com a sociedade branca, a "galega", a elite do Corredor da Vitória, de Vilas do Atlântico e da Costa do Sauípe, ordenando ocultamente o extermínio de negros pobres e sem espaço digno na capital da Bahia. A Casa Grande soteropolitana não suporta ser uma ilha cercada de senzalas e quilombos por todos os lados.
Negros mortos porque furtaram carne num supermercado, porque dormiam na rua de madrugada. Balas perdidas da polícia elitista, ações de traficantes e milicianos, a guerra do jogo-do-bicho, os feminicídios, afome e a miséria, tudo isso faz de Salvador uma cidade sem salvação, uma cidade que já foi o paraíso e hoje virou o inferno.
Temos a mídia coronelista a serviço de DJs, editores musicais de sucessos estrangeiros e, mais do que isso, de blocos carnavalescos e dirigentes esportivos, enquanto a função de rádiojornalista, desempenhada sem a formação universitária e vivencial necessária, como se fosse um cargo político, enquanto seus locutores, no seu juízo de valor, comentam até sobre aquilo que não sabem. Daí ser compreensível que a Rádio Metrópolestava desesperada em contratar jornalistas de qualidade para atuar como ghost writers de comentários narrados pelo astro-rei Mário Kertész (que na última segunda-feira obteve visibilidade ao entrevistar Lula a respeito do imposto de renda).
Temos o decadente sistema de ônibus cujo sindicato patronal expressa sua burrice até na forma de leitura de sua complicada sigla SETPS: "setépis". E recentemente linhas rentáveis e funcionais como 0413 IAPI / Barra e 1061 Estação Mussurunga / Brotas foram criminosamente extintas, obrigando os passageiros a fazerem baldeação em ônibus superlotados ou em metrôs que já começam a agir como trens suburbanos, também entregues à superlotação que faz seus trens se desgastarem mais rápido, oferecendo risco à demanda.
Musicalmente, temos os deploráveis arrocha e piseiro, que aqui dispensam maiores comentários. E temos um cenário de "pagodão" que já é racista ao tratar o negro baiano como um misto de débil mental e tarado, com letras machistas tipo "Madeirada" e "Tapa na Cara". E isso ancorado num mercado de axé-music que rebaixa a alegria ou mesmo um ato como um beijo na boca como meras mercadorias de consumo.
Bell Marques, rico e latifundiário, sem ter o que fazer mais na música, insiste em se manter na carreira, um cantor tão ruim que não consegue fazer jingle de seu próprio sucesso, para uma promoção de uma rede de supermercados. Mas ele é um dos líderes da axé-music, que em si é uma porcaria musical sem pé nem cabeça, marcada também pela positividade tóxica do É O Tchan, que é capaz de erotizar o público infantil com uma sorridente pedofilia que, pasmem, faz as "boas" famílias dormirem felizes da vida.
E no plano religioso? Salvador, cujo sincretismo religioso é maculado pela pressão intolerante das seitas neopentecostais, ainda vive a supremacia de dous horrendos "médiuns" do Espiritismo brasileiro, um, bem mais velho, tendo feito turismo na Europa e EUA enquanto os assistidos de sua "mansão" mal tinham direiro de passear em Salvador, e outro, relativamente mais jovem, que faz piadas contra gordas, sogras e louras falsas, explora trabalho infantil e instalou sua instituição em Pituaçu sem alvará. O mais velho se afirmou bolsonarista e admirador de Sérgio Moro, o segundo serve um fórum e comprou a Justiça para se tornar juridicamente "intocável".
Com todos esses aspectos, Salvador, que tentou minimizar os problemas há uns de anos, perdeu o controle e virou uma das capitais mais violentas do país considerado um dos mais violentos do mundo. A Bahia torna-se o Brasil levado às últimas consequências e Salvador luta para ser a capital da elite do bom atraso, como paisagem de consumo para seus abastados indivíduos se entupirem de cerveja enquanto pulam ao som do trio elétrico.
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