Pular para o conteúdo principal

LINCOLN OLIVETTI E A CRISE DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA


Delicado falar prós e contras sobre alguém que acaba de falecer. No caso de Lincoln Olivetti, falecido na noite de ontem, aos 60 anos, de infarto, essa situação se encaixa bem, já que muito do que ele fez, em que pese seus méritos de músico e arranjador, criou as condições para a crise que vive a MPB hoje em dia.

Olivetti implantou uma mentalidade hit-parade para a MPB, radicalizando aquilo que o produtor Liminha, ex-membro dos Mutantes, colheu nas suas pesquisas de produção e composição musical quando foi aos EUA, trazendo, na volta, um livro que compartilhou com Lulu Santos, sobre a vantagem de criar uma canção assobiável no Brasil.

Como músico e arranjador, Lincoln Olivetti tem seus méritos de implantar o sintetizador, compor canções assobiáveis ou fazer arranjos do estilo Earth Wind & Fire. Se fosse uma expressão pessoal e específica de suas propostas musicais, tudo bem. Mas o grande problema é que ele acabou se tornando regra dominante nesse processo, e a MPB, por diversos motivos, sucumbiu ao comercialismo em suas mãos.

Nessa época, o cenário político já era delicado. Mesmo sendo uma fase considerada branda como a de Ernesto Geisel, era ainda bastante repressiva, e o AI-5 só foi extinto no final de 1978. O Brasil vivia uma crise de valores, porque a chamada "revolução" não conseguiu melhorar a situação do país, como os militares haviam prometido em 1964.

A MPB autêntica até teve um fôlego intenso entre 1964 e 1975. Num primeiro momento, cepecistas (que defendiam a valorização das raízes musicais aliadas a temáticas de contestação social e política) e bossanovistas (que defendiam a sofisticação artística) se uniram e criaram juntos um cenário de música brasileira que brilhou nos festivais de música de 1965-1968.

Em segunda instância, a Tropicália mostrou aos emepebistas acima descritos que se poderia inserir a guitarra elétrica e as influências estrangeiras sem prejudicar a brasilidade musical, uma lição que já havia sido feita, antes, com o sambalanço e a Bossa Nova, nos anos 1950, e depois, com o Rock Brasil, nos anos 1980.

Só que com o Brasil ditatorial, a música brasileira passou a enfrentar seus problemas. A música brega, extremamente comercial e retardatária, divulgada por rádios controladas por latifundiários e políticos ou pelo empresariado urbano associado, virou uma falsa terceira via da música brasileira, mesmo sem contribuir de forma edificante para o enriquecimento da música brasileira.

O brega apoiado pelo latifúndio só forjou uma falsa brasilidade nos anos 70, quando o coronelismo buscava políticas de desenvolvimento agrícola e implementação do turismo durante o "milagre brasilleiro". Enquanto isso, a MPB continuava lançando discos conceituais, vivendo seu apogeu criativo em 1976.

Pouco depois, a ascensão de Lincoln Olivetti criou uma fase "MPB de produtor", pasteurizando a música brasileira aos níveis de canções românticas, sucessos comerciais e superprodução e muita pompa. Com ele, o artista passou a gravar em Los Angeles, fazer concertos superproduzidos, criar discos musicalmente padronizados, prejudicando a criatividade em prol da produção de sucessos radiofônicos.

Lincoln Olivetti fez esse trabalho de transformar a MPB em hit-parade, com seu parceiro Robson Jorge, há tempos falecido. Esse padrão se radicalizou no começo dos anos 80, o que fez a MPB se acomodar e perder o diálogo com a juventude que, entediada, resolveu curtir o Rock Brasil.

Mas o pior ainda estava por vir, e desde então surgiram ex-músicos da Jovem Guarda, que se ascenderam quando, paralelamente à "MPB de produtor", a supremacia dos produtores e arranjadores sobre os artistas, dentro de um contexto de muito comercialismo, fez também com que o brega dos anos 70 fosse contemplado com discos superproduzidos e "moderninhos".

E aí vieram ídolos como Ângelo Máximo, Fernando Mendes, Gretchen e José Augusto, na primeira tentativa de criar um hit-parade brasileiro, sem qualquer compromisso artístico-cultural, enquanto alguns outros intérpretes brincaram de fazer música estrangeira, como Década Romântica, Pholhas, Fábio Jr. (codinome Mark Davis), além do ambicioso Michael Sullivan, todos na carona de Morris Albert e Terry Winter, one-hit wonders que pareciam convincentemente americanizados.

E aí Sullivan chamou o ex-tecladista de Lafayette e Seu Conjunto, Paulo Massadas, mais o ex-colega de Sullivan nos Fevers, Miguel Plopschi, para bolar uma radicalização do comercialismo musical brasileiro, um plano de, primeiro, cooptar a MPB já pasteurizada para eliminá-la depois, conforme denúncias feitas por Alceu Valença sobre o esquema, sem citar nomes.

E aí eles completaram o trabalho de Lincoln Olivetti e Robson Jorge. Se eles criaram um padrão comercial para a MPB autêntica, esse virou a fonte para a lapidação do brega dos anos 70 nas mãos de Sullivan e Massadas. Alguns emepebistas menos contestadores, como Raimundo Fagner, Roupa Nova e Alcione compactuaram com o esquema de Sullivan e Massadas.

Isso criou as condições para o aparecimento da geração neo-brega dos anos 90, como Só Pra Contrariar (e, por conseguinte, Alexandre Pires), Chitãozinho & Xororó, Negritude Júnior, Soweto (e Belo), Leandro e Leonardo (e, depois, este último), Zezé di Camargo & Luciano, Luiz Caldas, Mastruz Com Leite, Frank Aguiar, Exaltasamba, etc etc.

Todos eles acabaram fazendo a fusão entre a MPB pasteurizada e o brega arrumadinho, e, virando estrondosos sucessos comerciais, fizeram com que Lincoln, Robson, Michael e Paulo comemorassem compondo, juntos, "Amor Perfeito".

E, para celebrar esse "crime perfeito" contra a música brasileira, chamaram Roberto Carlos, para interpretar a canção, mais tarde sucesso também de Chiclete Com Banana (que virou ícone neo-brega nas mãos de Bell Marques) e Cláudia Leitte ("filha" tardia dos neo-bregas). E o neo-brega acabou se tornando tão hegemônico que até o que resta de MPB autêntica hoje está ameaçado a morrer.

Ninguém desconfiou e as pessoas mordiam as iscas, reforçadas pela blindagem intelectual dos anos 90 que levou-se tempo para desmontar. E, mesmo assim, as pessoas, de maneira masoquista, ainda foram reabilitar Michael Sullivan como se fosse "MPB séria". Mas, num país que até Fernando Collor é "reabilitado" e feminicidas ricos viram "genros ideais" para certas famílias, faz sentido.

Com isso, em que pese a competência musical de Lincoln Olivetti, ele forneceu as condições para a atual crise da MPB em que vivemos. Ele criou uma mentalidade comercial, pomposa, pretensiosa e autorreverente, "americanizou" a música brasileira e tirou dela aquele vigor dos anos 60, afastando a MPB autêntica dos jovens.

Daí que a maior parte da juventude brasileira, sem algum referencial decente para curtir, fica perdida entre o brega-popularesco costumeiro e o roquinho frouxo tocado por certas "rádios rock". As gerações que deveriam revitalizar nossa cultura só estão apreciando mediocridades e barbaridades.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"ANIMAIS CONSUMISTAS"AJUDAM A ENCARECER PRODUTOS

O consumismo voraz dos "bem de vida" mostra o quanto o impulso de comprar, sem ver o preço, ajuda a tornar os produtos ainda mais caros. Mesmo no Brasil de Lula, que promete melhorias no poder aquisitivo da população, a carestia é um perigo constante e ameaçador. A "boa" sociedade dos que se acham "melhores do que todo mundo", que sonha com um protagonismo mundial quase totalitário, entrou no auge no período do declínio da pandemia e do bolsonarismo, agora como uma elite pretensamente esclarecida pronta a realizar seu desejo de "substituir" o povo brasileiro traçado desde o golpe de 1964. Vemos também que a “boa” sociedade brasileira tem um apetite voraz pelo consumo. São animais consumistas porque sua primeira razão é ter dinheiro e consumir, atendendo ao que seus instintos e impulsos, que estão no lugar de emoções e razões, ordenam.  Para eles, ter vale mais do que ser. Eles só “são” quando têm. Preferem acumular dinheiro sem motivo e fazer de ...

A PROIBIÇÃO DO "FUNK" E DO USO DOS CELULARES NAS ESCOLAS

Nos dois lados da polarização, há iniciativas que, embora bastante polêmicas, pretendem diminuir a fuga de foco dos alunos dos ensinos fundamental e médio no cotidiano escolar. Do lado lulista, temos a aprovação de uma lei que limita o uso de telefones celulares para fins pedagógicos, proibindo o uso recreativo nos ambientes escolares. Do lado bolsonarista, várias propostas proíbem projetos que proíbem o "funk" e outras músicas maliciosas a serem tocados nas escolas. Lula sancionou a lei surgida a partir da aprovação do Projeto de Lei 104, de 03 de fevereiro de 2015, do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), que estabelece a proibição do uso informal dos telefones celulares pelos alunos das escolas públicas e privadas. A lei só autoriza o uso dos celulares para fins pedagógicos, como pesquisar textos indicados pelos professores para exercícios em salas de aula. ""Essa sanção aqui significa o reconhecimento do trabalho de todas as pessoas sérias que cuidam da educação, de ...

QUANDO, NO ATEÍSMO, O GALINHEIRO SE TRANSFORMA EM TEMPLO DE RAPOSA

O ateísmo virou uma coisa de gente à toa. Além da má compreensão do que é mesmo a descrença em Deus - uma figura lendária e folclórica que grande parte da humanidade atribui como "o Criador de todas as coisas" - , que chega mesmo a se tornar uma "religião invertida" cheia de dogmas (como a certeza da "inexistência de Jesus Cristo", sem admitir pesquisas nem debates sobre o suposto "Jesus histórico" que causa polêmicas nos meios intelectuais), há costumes estranhos nessa descrença toda. Como se vê em comunidades como Ateísmo BR, há uma estranha complacência e até devoção em torno de um farsante religioso, o tal "médium da peruca" que transformou a Doutrina Espírita em um chiqueiro. O "médium dos pés de gelo", que amaldiçoou alguns de seus devotos famosos que, tempos depois, viam seus filhos morrerem prematuramente de repente, é defendido por supostos ateus com uma persistência muitíssimo estranha. As alegações sempre se referem...

NÃO SE ACHA UM WALTER SALLES EM QUALQUER BOATE DESCOLADA OU BAR DA ESQUINA

Costumo dizer que exceção é como um micro-ônibus no qual as muitos querem que tenha a lotação de um trem-bala. Todos querem ser exceção à regra. A regra quer ser exceção de si mesma. E num Brasil afundado de muito pretensiosismo e falsidade, todos querem ser reconhecidos pelo que realmente eles não são. Na burguesia e, principalmente, na elite financeira, temos uma brilhante exceção que é o cineasta Walter Salles, de uma obra humanista e progressista. Por uma questão de vínculo familiar, Walter é membro de uma família de banqueiros, acompanhou o auge da carreira do pai, Walther Moreira Salles - do qual herdou o nome, acrescido da palavra "Júnior" - , e é uma das pessoas mais ricas do país. Mas Walter Salles é uma grande exceção à regra, e o seu cinema tem uma proposta de lançar questões que ele mesmo tem em mente, indo do documentário sobre Chico Buarque ao recente drama sobre Rubens Paiva, Eu Ainda Estou Aqui , passando por temas como a geração beat  e a juventude de Che Gue...

BOLSONARISTAS CAUSAM PÂNICO COM MENTIRAS SOBRE PIX

Os últimos dias foram marcados, na Economia brasileira, por um escândalo provocado por uma onda de mentiras transmitidas por bolsonaristas, a partir de um vídeo do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG). Assim que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou que pretende aumentar a fiscalização para movimentações financeiras, as mentiras se voltaram para a hipotética taxação do Pix. Trata-se de uma interpretação leviana do que a equipe econômica cogitava fazer, que seria o aumento da fiscalização sobre transferências em valores superiores a R$ 5 mil através do Pix de pessoas físicas e acima de R$ 15 mil de pessoas jurídicas (empresas). A interpretação supunha que o Governo Federal iria aumentar os impostos de pessoas físicas que utilizassem pagamentos através do Pix, sistema de pagamento criado pelo Banco Central. Várias pessoas ligadas a grupos bolsonaristas espalharam a mentira e estarão sob investigação pela Polícia Federal, a pedido da Advocacia-Geral da União. A medida causou pânic...

DOUTORADO SOBRE "FUNK" É CHEIO DE EQUÍVOCOS

Não ia escrever mais um texto consecutivo sobre "funk", ocupado com tantas coisas - estou começando a vida em São Paulo - , mas uma matéria me obrigou a comentar mais o assunto. Uma reportagem do Splash , portal de entretenimento do UOL, narrou a iniciativa de Thiago de Souza, o Thiagson, músico formado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) que resolveu estudar o "funk". Thiagson é autor de uma tese de doutorado sobre o gênero para a Universidade de São Paulo (USP) e já começa com um erro: o de dizer que o "funk" é o ritmo menos aceito pelos meios acadêmicos. Relaxe, rapaz: a USP, nos anos 1990, mostrou que se formou uma intelectualidade bem "bacaninha", que é a que mais defende o "funk", vide a campanha "contra o preconceito" que eu escrevi no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... . O meu livro, paciência, foi desenvolvido combinando pesquisa e senso crítico que se tornam raros nas teses de pós-graduação que, em s...

A VELHA ORDEM SOCIAL LUTOU PARA SOBREVIVER EM 2024

OS NETOS DA GERAÇÃO GOLPISTA DE 1964 SE ACHAM OS PREDESTINADOS E "DONOS" DO FUTURO DO BRASIL. O nosso país vive uma não declarada pandemia do egoísmo. A "liberdade" desenfreada de quem quer demais na vida, de uma elite que não se sentiu representada por Jair Bolsonaro e que viveu as limitações da Covid-19, mostra o quanto o Brasil preferiu, de 2022 para cá, viver em ilusões, a ponto de haver um novo "isentão", o negacionista factual, que sente fobia de senso crítico e mede a qualidade da informação pelo prestígio de quem diz, pouco importando se o fato é verídico ou não (e, se for, é mera coincidência). Como jornalista, minha missão é juntar as peças dos quebra-cabeças e não me contentar com a realidade fragmentada que confunde contradição com equilíbrio ou versatilidade. Criando uma "linha do tempo" da elite do atraso, vejo que não há contraste entre a "democracia" pedida pelos que defendiam a queda de João Goulart em 1964 e a "de...

PRÉ-CANDIDATURA DE GUSTTAVO LIMA À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA REVELA ESTRATEGISMO PERIGOSO DA EXTREMA-DIREITA

RONALDO CAIADO APADRINHA A POSSIBILIDADE DO BREGANEJO GUSTTAVO LIMA SER CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. O anúncio do cantor breganejo Gusttavo Lima para se candidatar à Presidência da República em 2026 revela uma habilidade estratégica da extrema-direita em diversificar suas opções e pulverizar o jogo eleitoral. Diferente dos lulistas, que apostam na velha opção de Lula, que busca reeleição, numa arriscada iniciativa de investir num idoso para conduzir o futuro do Brasil, os extremo-direitistas buscam renovar e diversificar as opções, buscando atrair o público jovem e as classes populares. O caso de Pablo Marçal, influenciador e empresário, mas representante do brasileiro “indignado”, foi um teste adotado na campanha para a Prefeitura de São Paulo. É uma tendência perigosa, que mostra a habilidade dos extremo-direitistas em jogar pelo improviso. Eles podem ser patéticos no conjunto da obra, mas são muito, muito habilidosos em suas estratégias. O Brasil vive um cenário viciado de ...

NÃO SE COMPRA IMÓVEIS NEM PLANOS DE INTERNET COMO SE COMPRA PÃO NUMA MANHÃ DE DOMINGO

O EMPRESARIADO PENSA QUE COMPRAR IMÓVEIS E PLANOS DE INTERNET É IGUAL A COMPRAR PÃO NOS FINS DE SEMANA E FERIADOS. Sabemos que se tem que cumprir deveres e ter que aceitar trabalhar em fins de semana e feriados. Ainda que fosse em supermercados, restaurantes ou shopping centers, vá lá, mas certas funções não têm tanta necessidade assim de exigirem serviços nos dias de folga. O caso dos corretores de imóveis e dos profissionais de telemarketing, exigir trabalho em dias de folga é um abuso do qual os patrões tentam persuadir com um discurso envolvente, capaz de convencer o profissional iniciante, desesperado por uma remuneração. Na corretagem, é muito comum gerentes dizerem aos estagiários de corretor de imóveis: “Enquanto muita gente gostaria de passar o Natal, o Ano Novo e o Carnaval em casa, dormindo, a gente trabalha nos horários de folga para conseguir uma venda”. Alguns argumentos tentam convencer o (a) empregado (a)a abandonar esposa ou esposo, filhos, mãe doente e sacrificar hora...

AS REAÇÕES PARANOICAS DO BURGUÊS ENRUSTIDO

Na “sociedade do amor” guiada pela “democracia de um homem só” de Lula, a burguesia comanda uma “frente ampla” social que vai do ex-pobre “reMEDIAdo” por loterias e promoções de produtos ao famoso e/ou subcelebridade dotado de muito dinheiro e extravagância. Nessa fauna de “animais consumistas”, essa frente, a elite do bom atraso, é dotada também de muita falsidade, além de um culturalismo vira-lata que os faz gostarem de músicas de gosto duvidoso e a falarem jargões como a intragável e cafona gíria “balada” (© Jovem Pan) e neologismos em portinglês como “doguinho” e “lovezinho”. Mesmo os mais “modestos” membros dessa classe cujos avós suplicaram a queda de João Goulart em 1964 nem que seja pelo preço de uma guerra - conforme revelaram documentos da felizmente nunca realizada Operação Brother Sam, décadas depois - podem ser incluídos nesse banquete simbólico da burguesia, por compartilharem, pelo menos em parte, dos privilégios e interesses da aristocracia bronzeada que temos. A falsid...