Neste país de convulsões sociais, as esquerdas mostram, em parte, posturas um tanto estranhas à sua natureza progressista.
Essas posturas se referem ao desenvolvimentismo da ditadura militar e ao direito das mulheres até de cometer o chamado "golpe do baú".
São posturas que se baseiam em argumentos aparentemente bem intencionados.
No caso da ditadura militar, os argumentos se referem ao fato de que os generais fizeram a economia brasileira crescer e se tornar a oitava economia do mundo.
Alegam que os generais implantaram um projeto desenvolvimentista que realizou grandes obras.
Mas essas obras não envolveram interesses das classes populares, que ficaram de fora de participar dos resultados do desenvolvimento econômico.
Além do mais, isso não compensava o ambiente de repressão, censura e torturas intensos.
Há também a alegação aparentemente feminista de que as mulheres "devem apenas ser livres", num hedonismo cego e imprudente, incluindo a inclinação a atitudes como se casar com um homem por dinheiro.
Interpreta-se até mal a ideia de Simone de Beauvoir, conhecida escritora e ativista feminista.
Ela havia dito: "Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância".
O problema é que a ideia de liberdade como algo sem controles fazia sentido nos anos 1960, em tempos de Contracultura.
O que é "liberdade" hoje, se há muitos "defensores da liberdade" que são contra os direitos humanos?
No caso da mulher, infelizmente a realidade mostra uma complexidade que o simples hedonismo, por si, não é garantia de plena realização feminina.
A questão do golpe do baú é, aliás, uma compactuação com o machismo, e no Brasil o feminismo tenta fazer acordos com o machismo.
Nos casamentos com homens ricos, as mulheres acabam aceitando o papel subalterno imposto pela sociedade patriarcal, sendo apenas uma vitrine para o prestígio social do marido.
Além disso, o golpe do baú é uma atitude capitalista que nada tem de progressista.
Como na prostituição, em que a mulher se resigna a ser um objeto sexual a serviço de homens que, não raro, são, além de machistas, ébrios em potencial e muito agressivos.
Há problemas em certas agendas de esquerda, quando o caso é cultura e comportamento, no qual se corroboram valores trazidos pela direita.
Usa-se como desculpa a falácia que o povo usa valores de direita para tirar sarro ou fazer enfrentamento.
Isso é compreensível. Mesmo as esquerdas brasileiras são, em parte, herdeiras de uma linhagem iniciada pelos membros da Conjuração Mineira, que a História registra como Inconfidência Mineira.
Os manifestantes eram simpatizantes do Iluminismo e da Declaração dos Direitos Humanos de 1789, mas defendiam o regime de trabalho escravo.
A bregalização cultural, em que as esquerdas apelavam para apoiar um Zezé di Camargo que, mais tarde, defendeu o governo militar dizendo que "nunca existiu ditadura no Brasil", é um caso ilustrativo.
Com a bregalização, o mito da "pobreza linda" fez com que os pobres fossem aceitos apenas em suas qualidades negativas.
Sob a desculpa de se solidarizar com os dramas das prostitutas, defendeu-se mais a prostituição e as prostitutas é que tinham que ser prisioneiras de seu próprio ofício.
No caso da sensualidade, houve o lado absurdo de mulheres-objetos que se ostentavam demais com roupas apertadas e corpos turbinados, visto como "liberdade do corpo".
Só que essa atitude dita "empoderada" tem dois equívocos.
Um é uma parcela das mulheres de aceitarem, até mesmo com gosto, o papel de objetos sexuais, vivendo tão somente desta imagem.
Segundo é que elas, sob a desculpa de "liberdade feminina" do "direito de vestir e ser o que quiser", exibiam seus corpos siliconados para um público machista.
Quantas mulheres-frutas não se "sensualizavam", sob o pretexto do "direito ao corpo", para machões com perfil muito semelhante ao dos bolsomitos e dos "coxinhas" armados do MBL?
Essas posturas são muito estranhas e revelam o quanto mesmo pessoas progressistas ainda têm uma raiz, para não dizer um DNA, conservador.
Como os "iluministas de engenho" que achavam o Iluminismo o máximo, mas rejeitavam o abolicionismo, há esquerdistas que adotam preconceitos elitistas, e eles justamente são os que mais falam nessa ideia de "romper o preconceito".
Deve ser porque há o complexo deles próprios serem muito preconceituosos.
Há esquerdistas que sentem uma aversão sutil aos pobres, e só gostam dos pobres quando eles cumprem o papel subalterno da idiotizante mídia hegemônica do entretenimento.
Quando o pobre rebola e exibe seus dentes banguelas num sorriso ingênuo, os esquerdistas dessa espécie paternalista batem palmas, acham que isso é a "verdadeira cultura popular", a promovem como "sabedoria pop" e tudo o mais.
Mas quando o pobre fecha as rodovias para pedir novas passarelas, ou reclama dos salários de fome e da opressão profissional, esses setores das esquerdas reagem com raiva.
Tentam argumentar que melhorar a educação e a cultura populares são "higienismo", "elitismo" e até, pasmem, "fascismo".
Mas não veem crueldade quando uma prostituta que, "para o bem das periferias", não pode ser professora e sim "puta", é morta por um machista que se recusou a pagar pelo serviço do sexo e se irritou com o aviso da cobrança do preço.
Esses setores das esquerdas são de origem pequeno-burguesa, tem preconceitos de suas próprias elites, embora tentem traduzi-los sob alegações "esquerdistas".
São pessoas que têm até empregados domésticos, e usam a defesa da bregalização cultural, do ideal da "pobreza linda", para evitar pagar mais salários para seus serviçais.
Defendem o brega para se passarem por "bonzinhos" diante das classes pobres, enquanto atrasa o pagamento dos salários e outras ajudas de custo.
Esses problemas das esquerdas defendendo a ditadura ou a compactuação da mulher com o machismo são dados sombrios que revelam um diagnóstico.
Foram posições assim que fizeram as esquerdas perderem o poder, depois de se aliarem com os políticos fisiológicos que depois a expulsaram do governo.
Foram esquerdas assim que acabaram, mesmo sem querer, abrindo caminho para os tempos retrógrados em que vivemos.
Trata-se de uma esquerda que, embora vá para a frente em vários momentos, gosta de dar umas boas marchas-a-ré em outros.
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