Há 30 anos o futebol brasileiro morreu. Da forma como era, um esporte tomado de espontaneidade e criatividade, tudo desapareceu, o que hoje vemos é simulacro.
Hoje temos o futebol-mercadoria, uma indústria de jogadores que, depois, viram subcelebridades, e são poucos os que destoam dessa regra.
A situação do futebol-mercadoria e do futebol-empresa veio à tona quando o influenciador Felipe Neto denunciou a crise administrativa do clube carioca Botafogo de Futebol e Regatas, preocupado com o que ele considera "o começo da falência" do time.
O futebol-mercadoria é um jogo de cartas marcadas, que faz mais fanáticos do que torcedores. Futebol deixa de ser um esporte para se tornar uma religião do nível das seitas "neopenteques", com todo o seu fundamentalismo e sua emotividade tóxica.
Nas escolas, as aulas de Educação Física se tornaram arremedos de futebol profissional, no qual se excluem aqueles que não sabem jogar bola.
Em 1986, tive uma única oportunidade de ver um futebol sendo jogado de forma democrática, por aqueles que, parafraseando Guilherme Arantes através de Elis Regina, estavam "aprendendo a jogar".
Eu mesmo, ruim de bola, participei de tais partidas, desajeitadas mas espontâneas e ingênuas.
Isso tudo acabou. Nas escolas, se cria uma "panelinha" de futebol "profissionalizado", que reflete depois na indústria que se tornou o esporte.
As pessoas hoje se empolgam muito com o futebol, mas a verdade é que isso não passa de um saudosismo mal-disfarçado, como aqueles coroas e idosos que tomam um porre de cerveja, em busca de repetirem a mesma emoção da primeira vez.
No caso do futebol, estamos perseguindo as mesmas emoções de 1958-1962, anos que foram um período único para o esporte, unindo talento, vitória e contexto social saudável.
Depois o que se viu foi o desencontro dessas virtudes, ou pelo menos de uma das três.
Em 1970, houve talento de jogadores e vitória nos gols. Mas o cenário social estava horrível, com a repressão ditatorial botando para quebrar.
Nos anos 1980, com uma geração de bons jogadores que iam do hoje bolsomínion Zico ao falecido progressista Sócrates, havia talento e, em parte, um contexto social (havia esperança pela volta da democracia), mas sem grandes vitórias em caráter nacional. Só em times regionais.
Hoje não temos mais isso. O talento virou uma linha de montagem. Os gols, um jogo de cartas marcadas. Muita coisa cheira ter sido previamente combinada.
Os clubes de futebol viraram empresas. Jogadores de futebol não mais treinam como esportistas, mas como empregados em trainée profissional, com um "talento" mais próximo da encenação do que da habilidade espontânea dos pés (e das mãos, no caso dos goleiros).
Os dirigentes esportivos atuam ao mesmo tempo como políticos e empresários.
A mídia esportiva se corrompeu. Houve uma concorrência desleal das FMs sobre as AMs, com vantagem predadora às primeiras, controladas por oligarquias. E isso com o rádio AM sendo condenado à morte pelo juízo tecnocrático dos barões da telefonia celular.
O jabaculê envolvendo futebol e rádio FM hoje faz o jabaculê musical parecer brincadeira de bebê de seis meses. É tanto jabaculê que o establishment resolveu criar um eufemismo para a palavra "jabá", hoje definido como mershandising, só para abafar qualquer escândalo.
Eu mesmo quase entrei no jornalismo esportivo baiano, em 1999, mas eu, que estava com meus pais, fui avisado por um jornalista esportivo para não ser contratado, porque o mercado não é para iniciantes.
Entendi, subliminarmente, que existe uma "máfia" nos bastidores dessa "Igreja Universal da Emoção" a que se tornou o futebol brasileiro.
Até mesmo a emoção dos torcedores, antes uma alegria entusiástica, hoje tornou-se uma emotividade tóxica, que pode parecer uma imensa alegria quando tudo está bem, mas quando não está ela se converte em ódio.
Daí a violência dos torcedores, que a mídia esportiva critica e reprova, ignorando que se trata de uma consequência natural desse mercado histérico e fanático.
E esse fanatismo se observa em locais como o Rio de Janeiro, incluindo o dado patético de Niterói, em maioria, torcer por times da cidade vizinha. Alguém imaginaria, na Grécia Antiga, troianos torcendo por times de Esparta?
Nesse mercado voraz, onde existe um limitado elenco de vencedores, times pequenos como Galícia e Ipiranga, em Salvador, e Tio Sam e Canto do Rio, em Niterói, não conseguem ver a luz do Sol de chegarem a grupos de elite.
E o Rio de Janeiro tem o dado preocupante do futebol ser usado como medida de relações sociais, sob o risco de humilhação contra quem declarar que não curte futebol.
Aqui ninguém pergunta se alguém torce ou não por futebol. Tem gente que comenta sobre futebol para um estranho, assim, "na lata". Perguntam primeiro o time para depois perguntarem o nome de alguém.
Nos ambientes de trabalho, quem declara não gostar de futebol é o primeiro a sofrer valentonismo (bullying) e entra na fila dos primeiros a serem demitidos sem justa causa. Futebol vira pauta para o assédio moral, e isso é gravíssimo.
Daí que essa realidade não tem a ver com aquela alegria natural de 1958, quando a Seleção Brasileira de Futebol conquistou sua primeira vitória em Copa do Mundo e isso refletiu também com a ascensão e as vitórias dos times regionais brasileiros.
As pessoas perseguem uma alegria e um glamour que não existem mais, dentro de um esporte que produz mais Robinhos e Neymars do que Pelés e Garrinchas.
Trata-se apenas da perseguição neurótica e desesperada de um êxtase único, que não se repete mais, apesar de tantas falsas impressões de que essa emoção se repete naturalmente.
Porque não temos mais a alegria natural de 1958 e do decorrer dos anos 1960.
O que temos é uma alegria que parece imensa e ilimitada, porém ela é emocionalmente tóxica, a ponto dos cariocas e fluminenses gritarem feito trogloditas a cada gol de seu time, e mesmo em altas horas da noite.
Portanto, não sobram razões para dizer que o futebol brasileiro morreu em 1990, quando se encerrou, definitivamente, toda uma era que combinava talento, espontaneidade e alegria genuína.
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