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"FUNK" E A "TRANSGRESSÃO" COMO MERCADORIA

FOTO DE "BAILE FUNK" EM PARAISÓPOLIS, SÃO PAULO, TIRADA PELO AUTOR DE ENSAIO NO LE MONDE DIPLOMATIQUE, LUIZ PAULO FERREIRA SANTIAGO.

Embora tenha reduzido a amplitude que se observou entre 2002 e 2014, a campanha em prol dos fenômenos popularescos continua.

Nota-se, aliás, no período pós-golpe de 2016, que a toda crise que envolve os políticos golpistas, setores das "esquerdas médias" passam a evocar o "funk" como pretensa "tábua de salvação".

Um texto foi produzido na edição brasileira do jornal progressista francês Le Monde Diplomatique, dentro da agenda pró-funqueira.

Trata-se do ensaio "A potencialidade transgressora do funk", do graduado em Pedagogia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Luiz Paulo Ferreira Santiago, o terceiro de uma série intitulada "Periferias de São Paulo: cotidianos, conflitos e potências".

Embora aparentemente dotado de objetividade textual, o texto relembra a campanha chorosa "contra o preconceito" da intelectualidade "bacana" que tanto defendeu o "funk".

Ainda que seja ele um formando em Educação, a abordagem repete as narrativas antropológicas e sociológicas que glamourizam o "funk".

Afinal, esquece-se que o "funk" é um fenômeno de "cultura de massa", desenvolvido dentro de interesses do poder midiático e do poder mercadológico.

Não se trata aqui de requentar a "teoria epidérmica" da Comunicação, que aposta na tese da manipulação pura e simples do público, mas sim do fato de que o povo pobre não é protagonista do entretenimento funqueiro, antes um consumidor, se não passivo, pelo menos não-engajado.

A objetificação sexual das funqueiras persiste em ser vista como "feminismo" que "tensiona os valores machistas", quando se vê que as intérpretes do "funk" usam o modus operandi das mulheres-objetos para se "empoderarem".

Luiz Paulo, que no seu ensaio fotografou o "baile funk" D-17, de Paraisópolis, São Paulo, fala em "potencial transgressor" do "funk", cometendo um grave equívoco.

Também houve atribuições de que o k-pop, só por causa da trolagem feita num suposto boicote a um comício de Donald Trump, depois de vários fãs se inscreverem nas vagas do evento, havia sido, também, um "ato de transgressão".

A transgressão virou mercadoria, num contexto em que escandalizar já não causa tanto escândalo, porque se tornou inócuo e, também, um produto para consumo.

Vivemos numa época de sensacionalismo, lacração, polêmicas fabricadas, e essa gourmetização da transgressão humana nada tem de revolucionária nem de realmente transgressora.

Tudo vira um jogo de cão e gato. Fabrica-se uma suposta transgressão, evocando elementos do grotesco, e quem criticar é acusado de usar seu "bom gosto moralista" contra o "libertário" mau gosto "popular".

Se isso é revolucionário, então toda subcelebridade seria guevarista ou bolivariana por excelência, e olha que a maioria das subcelebridades, no Brasil e EUA, defende, respectivamente, Jair Bolsonaro e Donald Trump.

Luiz Paulo cita três autores que já foram citados no meu instigante e indispensável livro Esses Intelectuais Pertinentes..., que explica o golpe político de 2016 sob o âmbito da cultura.

Há o doutor em Letras pela USP, Acauam Oliveira, também membro do portal Farofafá, de Pedro Alexandre Sanches.

Há, também, Adriana Facina, antropóloga carioca, e seu parceiro Hermano Vianna, este um dos membros da "santíssima trindade" da intelectualidade pró-brega, juntamente com Pedro Sanches e Paulo César de Araújo.

É até correto questionar e repudiar a violência policial nos "bailes funk", mas isso tem uma dimensão que ultrapassa os limites do gênero, que não tem a ver, por si só, com essa repressão.

É ate impressionante, no sentido negativo da palavra, que a violência policial tenha sido usada para "guevarizar" o "funk".

Assim como Paulo César de Araújo gourmetizou os ídolos cafonas do passado corroborando com as abordagens da Censura Federal, a intelectualidade que defende o "funk" concebe a imagem do gênero através de um pretenso maniqueísmo com o Estado policial.

Ou seja, é a repressão como marketing, dentro da tática do vitimismo.

A intelectualidade pró-brega em geral é uma elite socioeconômica de qualquer maneira, ainda que seus ideólogos se autoproclamem "mais povo que o povo".

Eles se enquadram na classe média estudada por Jessé Souza em seus livros mais recentes.

Eles ficam no meio caminho entre o assistencialismo oportunista de Luciano Huck e uma visão etnocêntrica aristocrática, mas insistem em se posicionar, tendenciosamente, mais à esquerda.

Não parecem a exceção existente na classe média, quando seus membros passam a ver o povo pobre de maneira menos paternalista.

Afinal, os ideólogos da música brega, do "funk", da axé-music e similares adotam uma postura que é claramente paternalista, supostamente generosa mas ainda assim muito etnocêntrica.

Esses intelectuais se acham "mais povo do que o povo" porque se arrogam em "diagnosticar" as vontades do povo pobre, mais até do que eles próprios.

Só porque são acadêmicos que pesquisam muito ou jornalistas e cineastas que entrevistam muita gente, detendo um discurso "isentão" de suposta imparcialidade, não significa que eles se achem no direito de pensar em nome do povo.

Até porque esses ideólogos da intelectualidade "bacana" cometem sérios erros de julgamento, sobretudo quando despejam comentários hidrófobos sobre uma hipotética "elite higienista" de uma meia-dúzia de críticos musicais estereotipados como "aristocratas britânicos".

Ou seja, quando lhes convém, os intelectuais pró-brega também despejam ira hidrófoba sobre uns poucos críticos que nem influem na derrubada do sucesso dos ídolos da música popularesca.

Mas como ressalta a rejeição à mediocridade gritante a esses "sucessos do povão", a nossa intelligentzia, a "mais legal do Brasil", não gosta.

Isso porque a visão desmonta a imagem domesticada do povo pobre, ao mesmo tempo "combativa" e "ingênua", da narrativa intelectual hoje dominante que Esses Intelectuais Pertinentes... analisa criticamente.

O que tem que prevalecer é o "bom" etnocentrismo: o intelectual "sabedor de todas as coisas", com seu juízo de valor "positivo", exaltando uma imagem estereotipada do povo pobre "produzida" pela mídia do entretenimento.

E, junto a isso, narrativas fabulosas e dotadas do mais puro pensamento desejoso, mas travestidas da "mais pura objetividade textual". E essas teses prevalecem, apesar das contradições e equívocos que elas apresentam.

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