Pular para o conteúdo principal

TRECHO DE 'A ELITE DO ATRASO', DE JESSÉ SOUZA, É UMA INDIRETA AO "POPULAR DEMAIS"


Aparentemente, o sociólogo Jessé Souza não se arrisca a criticar a cultura popularesca.

Primeiro, por opção própria, por não ser esta a sua linha de pesquisa.

Segundo, porque sua ênfase está em aspectos sociológicos referentes à formação da família, a luta de classes (o "jogo de todos contra todos", nas palavras dele) e outros aspectos nesse âmbito.

Terceiro, talvez para não chocar demais porque ele integra a comunidade acadêmica, que abriga um poderoso lobby de sociólogos, antropólogos, historiadores, jornalistas e cineastas que fazem propaganda da bregalização cultural, o tal "combate ao preconceito".

(Esse lobby é analisado minuciosamente no meu super-livro Esses Intelectuais Pertinentes..., fundamental para entender as razões do golpe político através da cultura)

Mas isso é uma impressão que mais parece uma pegadinha.

E foi um pretexto para que Pedro Alexandre Sanches mostrasse seu "bom esquerdismo" de "filho da Folha" ao entrevistar Jessé Souza a título de pegar carona nas ideias do sociólogo.

Só que, durante muito tempo, Sanches defendeu justamente o culturalismo conservador do brega-popularesco, o "popular demais" que até o bolsonarista Sílvio Santos ajudou a difundir.

E como entra a bregalização cultural no conceito de culturalismo conservador e do "racismo científico" analisados em seus livros?

Simples. A bregalização cultural é um discurso que, embora supostamente exaltando os pobres, na verdade era uma propaganda em prol da manutenção da simbologia da pobreza.

Essa simbologia compõe o que a intelectualidade "sem preconceitos" mas muito, muito preconceituosa, definia como a "boa vida" das classes pobres, em seu discurso que, só por não ser raivoso (a não ser quando citava os críticos da bregalização), iludiu as esquerdas. 

São dessa simbologia a vida nas casas precárias das favelas (não raro situadas em áreas de risco), os "trabalhos" paliativos da prostituição e do comércio clandestino, e o trágico recreio dos idosos pobres pelo alcoolismo.

Tudo isso era visto, na narrativa espetacularizada de antropólogos, cineastas, jornalistas etc, como "libertário" e "sinônimo de felicidade" para as classes populares. "Romper o preconceito" era aceitar que o povo pobre "é melhor naquilo que ele tem de pior".

Esses Intelectuais Pertinentes... detalha todo esse discurso que me deixou abismado, quando li as seções culturais da mídia progressista.

Afinal, isso tudo não é "romper o preconceito", mas, o contrário, reforçar preconceitos ainda mais fortes, criando, na sociedade, uma rejeição ainda maior que permitiu o golpe de 2016.

E o que podemos inferir nas ideias de Jessé Souza? Simples, há um trecho, na página 123 do livro A Elite do Atraso, a primeira edição, anterior ao bolsonarismo, que pode ser interpretado para questionar a bregalização cultural. Vejamos o parágrafo:

"A lógica da maximização do lucro, que envolve a preponderância do valor de troca de uma mercadoria, ou seja, o seu preço final, em relação ao seu valor de uso, ou seja, a utilidade desta para seu comprador, aplicada à produção de bens simbólicos desvirtua o próprio valor de uso do bem cultural, que é possibilitar o desenvolvimento de uma capacidade reflexiva. Desse modo, a mercadoria da indústria cultural precisa abrir mão da complexidade inerente aos objetos culturais e produzir uma homogeneização psíquica 'por baixo', de modo a poder garantir a maior vendagem possível de mercadorias simbólicas ao maior número de pessoas. (...)".

Na bregalização cultural essa homogeneidade psíquica "por baixo" permitia ao público e aos agentes culturais da bregalização - como os cantores popularescos - assimilarem referenciais culturais da mídia oligárquica, de maneira acrítica, ainda que "voluntária".

Nada de antropofagia cultural. Até porque as "periferias" praticamente desconhecem o "seu Osvaldo de Andrade que, no tempo da tataravó, falava em canibalismo".

A mediocrização artística, seja musical, seja comportamental, a apreciação do pitoresco na imprensa marrom, a pieguice religiosa mais viscosa, o sentimentalismo amoroso exacerbado, a idiotização cultural, tudo isso era dissimulado pelo discurso choroso "contra o preconceito".

A própria intelectualidade se tornava "brega" com esse discurso, com toda a alegação vitimista que se falou, principalmente, do "funk" e dos ídolos cafonas do passado, e pelos surtos hidrófobos que transformavam em dragões de filme de fantasia quem rejeitasse a bregalização cultural.

Aí tinha um grande preconceito vindo do pessoal "sem preconceitos": um monstro de, pelo menos, quatro cabeças, sendo elas as de Flávio Cavalcânti, José Ramos Tinhorão, Lord Vinheteiro e Régis Tadeu.

Por outro lado, você tinha que engolir, como "ruptura do preconceito", abordagens que creditavam o karaokê primário do "funk" como se fosse um "riquíssimo caleidoscópio musical e comportamental".

Onde está o preconceito? Em quem vê o grotesco no "funk" ou em quem, no seu "bom" etnocentrismo, enxerga no gênero coisas que não lhe existem, como psicodelia, revolta de Canudos e Semana de Arte Moderna?

Já houve intelectual pró-brega defendendo a pedofilia no "funk", sob a desculpa de "iniciação sexual das meninas pobres das periferias". Infelizmente, não guardei o nome do ideólogo, mas infelizmente isso existiu, sim.

Felizmente, Jessé Souza veio com uma nova abordagem sobre o Brasil, e, mesmo que o culturalismo conservador se concentre em limites tolerados pela intelectualidade dominante, eles servem de subsídios para a gente desmontar as narrativas etnocêntricas em prol da bregalização cultural.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

SIMBOLOGIA IRÔNICA

  ACIMA, A REVOLTA DE OITO DE JANEIRO EM 2023, E, ABAIXO, O MOVIMENTO DIRETAS JÁ EM 1984. Nos últimos tempos, o Brasil vive um período surreal. Uma democracia nas mãos de um único homem, o futuro de nosso país nas mãos de um idoso de 80 anos. Uma reconstrução em que se festeja antes de trabalhar. Muita gente dormindo tranquila com isso tudo e os negacionistas factuais pedindo boicote ao pensamento crítico. Duas simbologias irônicas vêm à tona para ilustraresse país surrealista onde a pobreza deixou de ser vista como um problema para ser vista como identidade sociocultural. Uma dessas simbologias está no governo Lula, que representa o ideal do “milagre brasileiro” de 1969-1974, mas em um contexto formalmente democrático, no sentido de ninguém ser punido por discordar do governo, em que pese a pressão dos negacionistas factuais nas redes sociais. Outra é a simbologia do vandalismo do Oito de Janeiro, em 2023, em que a presença de uma multidão nos edifícios da Praça dos Três Poderes, ...

"ANIMAIS CONSUMISTAS"AJUDAM A ENCARECER PRODUTOS

O consumismo voraz dos "bem de vida" mostra o quanto o impulso de comprar, sem ver o preço, ajuda a tornar os produtos ainda mais caros. Mesmo no Brasil de Lula, que promete melhorias no poder aquisitivo da população, a carestia é um perigo constante e ameaçador. A "boa" sociedade dos que se acham "melhores do que todo mundo", que sonha com um protagonismo mundial quase totalitário, entrou no auge no período do declínio da pandemia e do bolsonarismo, agora como uma elite pretensamente esclarecida pronta a realizar seu desejo de "substituir" o povo brasileiro traçado desde o golpe de 1964. Vemos também que a “boa” sociedade brasileira tem um apetite voraz pelo consumo. São animais consumistas porque sua primeira razão é ter dinheiro e consumir, atendendo ao que seus instintos e impulsos, que estão no lugar de emoções e razões, ordenam.  Para eles, ter vale mais do que ser. Eles só “são” quando têm. Preferem acumular dinheiro sem motivo e fazer de ...

A SOCIEDADE HIPERMERCANTIL E HIPERMIDIÁTICA

CONSUMISMO, DIVERSÃO E HEDONISMO OBSESSIVOS SÃO AS NORMAS NO BRASIL ATUAL. As pessoas mais jovens, em especial a geração Z mas incluindo também a gente mais velha nascida a partir de 1978, não percebe que vive numa sociedade hipermercantilizada e hipermidiatizada. Pensa que o atual cenário sociocultural é tão fluente como as leis da natureza e sua rotina supostamente livre esconde uma realidade nada livre que muitos ignoram ou renegam. Difícil explicar para gente desinformada, sobretudo na flor da juventude, que vivemos numa sociedade marcada pelas imposições do mercado e da mídia. Tudo para essa geração parece novo e espontâneo, como se uma gíria fabricada como “balada” e a supervalorização de um ídolo mediano como Michael Jackson fossem fenômenos surgidos como um sopro da Mãe Natureza. Não são. Os comportamentos “espontâneos” e as gírias “naturais” são condicionados por um processo de estímulos psicológicos planejados pela mídia sob encomenda do mercado, visando criar uma legião de c...

COVID-19 TERIA MATADO 3 MIL FEMINICIDAS NO BRASIL

Nos dez anos da Lei do Feminicídio, o machismo sanguinário dos feminicidas continua ocorrendo com base na crença surreal de que o feminicida é o único tipo de pessoa que, no Brasil, está "proibida de morrer". Temos dois feminicidas famosos em idade de óbito, Pimenta Neves e Lindomar Castilho (87 e 84 anos, respectivamente), e muitos vão para a cama tranquilos achando que os dois são "garotões sarados com um futuro todo pela frente". O que as pessoas não entendem é que o feminicida já possui uma personalidade tóxica que o faz perder, pelo menos, 20 anos de vida. Mesmo um feminicida que chega aos 90 anos de idade é porque, na verdade, chegaria aos 110 anos. Estima-se que um feminicida considerado "saudável" e de boa posição social tem uma expectativa de vida correspondente a 80% de um homem inofensivo sob as mesmas condições. O feminicida tende a viver menos porque o ato do feminicídio não é um simples desabafo. No processo que se dá antes, durante e depois ...

ESTÁ BARATO PARA QUEM, CARA PÁLIDA?

A BURGUESIA DE CHINELOS ACHA BARATO ALUGUEL DE CASA POR R$ 2 MIL. Vivemos a supremacia de uma elite enrustida que, no Brasil, monopoliza as formas de ver e interpretar a realidade. A ilusão de que, tendo muito dinheiro e milhares de seguidores nas redes sociais dos quais umas centenas concordam com quase tudo, além de uma habilidade de criar uma narrativa organizada que faz qualquer besteira surreal soar uma pretensa verdade, faz da burguesia brasileira uma classe que impõe suas visões de mundo por se achar a "mais legal do planeta". Com isso, grandes distorções na interpretação da realidade acabam prevalecendo, mais pelo efeito manada do que por qualquer sentido lógico. "Lógica " é apenas uma aparência, ou melhor, um simulacro permitido pela organização das narrativas que, por sorte, fabricam sentido e ganham um aspecto de falsa coerência realista. Por isso, até quando se fala em salários e preços, a burguesia ilustrada brasileira, que se fantasia de "gente si...

ED MOTTA ERROU AO CRITICAR MARIA BETHÂNIA

  Ser um iconoclasta requer escolher os alvos certos das críticas severas. Requer escolher quem deveria ser desmascarado como mito, quem merece ser retirado do seu pedestal em primeiro lugar. Na empolgação, porém, um iconoclasta acaba atacando os alvos errados, mesmo quando estes estão associados a certos equivocos. Acaba criando polêmicas à toa e cometendo injustiças por conta da crítica impulsiva. Na religião, por exemplo, é notório que a chamada opinião (que se torna) pública pegue pesado demais nos pastores e bispos neopentecostais, sem se atentar de figuras mais traiçoeiras que são os chamados “médiuns”, que mexem em coisa mais grave, que é a produção de mensagens fake atribuídas a personalidades mortas, em deplorável demonstração de falsidade ideológica a serviço do obscurantismo religioso de dimensões medievais. Infelizmente tais figuras, mesmo com evidente charlatanismo, são blindadas e poupadas de críticas e repúdios até contra os piores erros. É certo que a MPB autêntica ...

A EXPLOSÃO DO SENSO CRÍTICO QUE ENVERGONHA A "BOA" SOCIEDADE

Depois de termos, em 2023, o "eterno" verão da conformidade com tudo, em que o pensamento crítico era discriminado e a regra era todos ficarem de acordo com um cenário de liberdade consumista e hedonista, cuja única coisa proibida era a contestação, o jogo virou de vez. As críticas duras ao governo Lula e as crises sociais do cenário sociocultural em que temos - como a queda da máscara do "funk" como suposta expressão do povo pobre, quando funqueiros demonstraram que acumularam fortunas através dessa lorota - mostram que o pensamento crítico não é "mera frescura" de intelectuais distópico-existencialistas europeus. Não convencem os boicotes organizados por pretensos formadores de opinião informais, que comandam as narrativas nas redes sociais. Aquele papo furado de pedir para o público não ler "certos blogues que falam mal de tudo" não fez sentido, e hoje vemos que a "interminável" festa de 2023, da "democracia do sim e nunca do nã...

COMO A BURGUESIA DE CHINELOS DISSIMULA SUA CONDIÇÃO SOCIAL?

A BURGUESIA ENRUSTIDA BRASILEIRA SE ACHA "POBRE" PORQUE, ENTRE OUTRAS COISAS, PAGA IPVA E COMPRA MUITO COMBUSTÍVEL PARA SEUS CARRÕES SUV. A velha Casa Grande ainda está aqui. Os golpistas de 1964 ainda estão aqui. Mas agora essa burguesia bronzeada se fantasia de “gente simples” e se espalha entre o povo, enquanto faz seus interesses e valores prevalecerem nas redes sociais. Essa burguesia impõe seus valores ou projetos como se fossem causas universais ou de interesse público. A gíria farialimer “balada”, o culto aos reality shows , o yuppismo pop-rock da 89 FM, Rádio Cidade e congêneres, a exaltação da música brega-popularesca (como a axé-music, o trap e o piseiro), a pseudo-sofisticação dos popularescos mais antigos (tipo Michael Sullivan e Chitãozinho & Xororó) e a sensação que a vida humana é um grande parque de diversões. Tudo isso são valores que a burguesia concede aos brasileiros sob a ilusão de que, através deles, o Brasil celebrará a liberdade humana, a paz soc...

LULA QUER QUE A REALIDADE SEJA SUBJUGADA A ELE

LULA E O MINISTRO DA SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, SIDÔNIO PALMEIRA. A queda de popularidade do presidente Lula cria uma situação inusitada. Uma verdadeira "torre de Babel" se monta dentro do governo, com Lula cobrando ações dos ministros e o governo cobrando dos assessores de comunicação "maior empenho" para divulgar as chamadas "realizações do presidente Lula". Um rol de desentendimentos ocorrem, e acusações como "falta de transparência" e "incapacidade de se chegar à população" vêm à tona, e isso foi o tom da reunião que o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Sidônio Palmeira, publicitário responsável pela campanha de Lula em 2022, fez com 500 profissionais de assessorias de diversos órgãos do Governo Federal, na última sexta-feira. Sidônio criticou a falta de dedicação dos ministros para darem entrevistas para falar das "realizações do governo", assim como a dificuldade do governo em apresentar esses dados ao ...

THE ECONOMIST E A MEGALOMANIA DA BURGUESIA DE CHINELOS ATRAVÉS DO "FUNK"

A CANTORA ANITTA APENAS LEVA O "FUNK" PARA UM NICHO ULTRACOMERCIAL DE UM RESTRITO PÚBLICO DE ORIGEM LATINA NOS EUA. Matéria do jornal britânico The Economist alegou que o "funk" vai virar uma "febre global". O periódico descreve que "(os brasileiros modernos) preferem o sertanejo, um gênero country vibrante, e o funk, um estilo que surgiu nas favelas do Rio. O funk em particular pode se tornar global e mudar a marca do Brasil no processo". Analisando o mercado musical brasileiro, o texto faz essa menção em comparação com a excelente trilha sonora do filme Eu Ainda Estou Aqui , marcada por canções emepebistas, a julgar pela primeiro sucesso póstumo de Erasmo Carlos, "É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo", uma antiga canção resgatada de um LP de 1971. "A trilha sonora suave do filme alimenta a imaginação dos estrangeiros sobre o Brasil como um país onde bandas de samba e bossa nova cantam canções jazzísticas em calçadões de areia. Mas ...