As esquerdas estão brincando muito, dentro desse período frágil que o Brasil vive desde 2016.
Tivemos tragédias ambientais sérias, como em Mariana (em 2015, mas dentro do contexto em que as pessoas já reivindicavam o golpe realizado no ano seguinte), Brumadinho, Amazônia e Pantanal.
Tivemos o incêndio no Museu Nacional. Corremos o risco de perder o acervo da Cinemateca Brasileira e até mesmo da antiga MTV Brasil, recusada até pela Viacom, como perdemos um monte de acervo de filmes e programas de TV mais antigos.
Que a sociedade "coxinha" fique feliz de uns tempos para cá, é compreensível. Gente achando que vive os "anos dourados" porque está brincando muito com o WhatsApp e "interagindo com a galera".
Tem cerveja nos bares e nos mercados, tem futebol rolando, muita coisa engraçada nas redes sociais, muita conversa fora para jogar com os amigos. Reclamar para quê, né?
O problema é que nossas esquerdas acabam também fazendo o mesmo, de maneira ainda mais perigosa. Afinal, pelo menos nossa direita social, moderada ou radical, está curtindo porque realizou o sonho de derrubar uma governante que odiavam.
As esquerdas, prejudicadas com isso, seriam as primeiras a não querer entrar na brincadeira. Mas acabam sendo as primeiras a entrar, sim.
Se nosso Brasil, como um todo, está preso à Era Geisel - os "verdadeiros anos dourados" na ótica de nossa sociedade conservadora - , nossas esquerdas ainda têm o vício de estarem presas a 2002.
Um 2002 no qual as esquerdas poderiam negociar com o pior da direita para conquistar objetivos. Tempos em que se furava a bolha sem ver a gravidade do calo. Basta ter uma agulha e se furava como quiser: bolha, ferida, cicatriz, sinalzinho do corpo.
Um 2002 no qual as próprias esquerdas escondiam sua formação educacional direitista, que permitiu tomar para si os "brinquedos culturais" da centro-direita, ligados a futebol, religião (incluindo a tal "espiritualidade"), cultura (popularesca, sobretudo o "funk") etc.
E esse imaginário cria perspectivas surreais.
Como a de tratar o ex-presidente Lula não como o antigo sindicalista que pensava no povo pobre, mas como um misto de Dom João VI, Dom Pedro II e o "melhor" de Emílio Garrastazu Médici.
Sim, pelos apelos emocionais das esquerdas médias, Lula nunca foi o Lula, mas um "Frankenstein do bem" que mistura os dois monarcas, português e brasileiro, com o general da ditadura.
Daí que, durante muito tempo, a agenda cultural das esquerdas se fundamentava na mesma breguice respaldada pelos bolsonaristas Sílvio Santos e Raul Gil.
Ou, quando muito, pelas novelas das nove da Rede Globo, que, pelo jeito, pautam a realidade paralela de muitos esquerdistas desavisados.
Dessas novelas se conhecem estereótipos que acabam resultando nos "heróis" que a centro-direita criou e que as esquerdas, por boa-fé, tomaram como seus.
São os professores universitários tomando cerveja enquanto conversam sobre o cotidiano.
É o velhinho franzino de fala mole, que faz pequenas ajudas e vira dublê de conselheiro e pacificador.
São os pobres sorridentes que rebolam dentro de um baile de subúrbio.
É o galã de novela que vira craque de futebol e conquista bens luxuosos e belas mulheres.
É a mulher lasciva com jeito de convencida que usa a sensualidade como trampolim na sua carreira.
É o garotão sarado da fazenda que adquiriu seu carrão utilitário como sinônimo de meritocrática conquista de vida.
E as próprias esquerdas médias se espelhando na classe média novelesca que vai para as favelas (no enredo, tidas como "paraísos" suburbanos) e interage com os pobres.
Daí que, com isso, surge todo o culto aos "brinquedos culturais" da direita moderada: mulheres-objetos, craques do futebol (tipo Neymar), "médiuns de peruca", funqueiros, "sertanejos" etc etc etc.
Quando se critica isso, as esquerdas se calam. Nenhuma autocrítica, nenhuma desilusão. Os "brinquedos" são apenas guardados no armário, para um momento mais adiante, quando as esquerdas imaginarem poder usar esses "brinquedos" sem escândalos.
Vivemos a supremacia de uma "esquerda" que reclama mais das esquerdas do que das direitas.
Reclama do antigo patrulhamento cultural, político, mobilizador. Reclama mais dos sindicatos de trabalhadores, do Movimento dos Sem-Terra, das invasões dos sem-teto, sem saber do que os motivam a recorrer a protestos extremistas.
Claro que sou contra a greve por si mesma. No concurso do IPHAN de 2005, fui prejudicado por uma greve de bibliotecários da UFBA surgida do nada, pois não creio que ela tenha sido a solução viável para aquela situação.
É claro que se devem criticar os extremismos sindicais ou a militância obsessiva, mas não a ponto de desprezar os movimentos das classes trabalhadoras.
Devemos também criticar os excessos das esquerdas dos anos 1970, como acreditar na boataria contra Wilson Simonal que arruinou sua carreira e o fez morrer cedo, ou invalidar o movimento black music que era muito interessante e surpreendentemente abrasileirado.
No entanto, daí para abrir as pernas para o culturalismo conservador, como fizeram as esquerdas ao aderir ao canto-de-sereia da intelectualidade "bacana", isso não dá. Foi o culto aos "brinquedos culturais" que fez as esquerdas abrirem as portas para o golpismo de 2016.
Apostar, como símbolo de "paz e confraternização", num reacionaríssimo "médium de peruca" que colaborou com a ditadura, fez literatura fake (padroeiro das fake news?)e pedia para os sofredores aguentarem as desgraças em silêncio (paz sem voz?), é um perigosíssimo equívoco.
E esse farsante religioso é blindado até hoje por um padrão de caridade fajuto, tipo Luciano Huck, que ajuda muito pouco os mais necessitados e ajuda mais o suposto benfeitor, com protagonismo e promoção pessoal.
É aquela coisa, que já ouço falar por aí: "aos pobres, as migalhas, aos médiuns, as medalhas".
Antes esse farsante religioso fosse repudiado da forma mais explícita pelos articulistas de esquerda. Desiludir-se com tais pessoas não é pecado. Não é ruim dizer que se decepcionou com alguém. Ruim é ficar calado diante de revelações verídicas sobre um ídolo que ameaçam fantasias agradáveis.
As esquerdas deveriam mudar completamente suas estratégicas. Não estamos em 2002 e o Brasil não é a novela das nove da Rede Globo.
O culturalismo conservador por trás dos "brinquedos culturais" da centro-direita só fizeram legitimar o poder midiático que deu, às esquerdas, esses verdadeiros "presentes de grego".
Afinal, a mídia hegemônica se empoderou, porque os valores culturais por ela difundidos foram adotados servilmente pelas esquerdas, sob desculpas diversas: "combate ao preconceito", "fim da polarização", "quebra do radicalismo sindicalista" etc.
Deram um tiro no pé. Os "brinquedos" empoderaram a mídia venal, que se sentiu fortalecida para desenvolver o discurso do golpe de 2016.
E, ao lado dos "heróis" adotados equivocadamente pelas esquerdas, vieram outros "heróis" não muito agradáveis, como Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e a turma do Movimento Brasil Livre (aka "Movimento Me Livre do Brasil").
É o "lado B" do culturalismo conservador, um preço que as esquerdas pagam ao assimilar valores culturais da direita neoliberal.
Agora as esquerdas, presas nos seus "brinquedos" e esperando 2022 repetir 2002, se recusam a mudar suas posições. Foi mais fácil para as esquerdas romperem com antigos pares como Fernando Gabeira e Antônio Palocci do que com o falecido "médium de peruca" reacionário e direitista radical.
É necessário romper com esses "brinquedos", aceitar que existe até bolsonarismo e tucanato no "funk", que Chitãozinho & Xororó não trarão a reforma agrária no campo nem na MPB nem no folclore brasileiro, e que mulheres-objetos representam o imaginário machista e não o contrário.
Se não houver esse rompimento, as esquerdas podem desistir de sonhar. O máximo de "esquerdismo" será Luciano Huck ou quem ele indicar para governar a nossa República.
O Brasil está no fim de sua infância. Estamos perdendo nossas riquezas naturais, pelo fogo e pelas privatizações. O trabalho está precarizado e ninguém luta para reverter tais retrocessos.
Hora de nossos formadores de opinião estabelecerem novas rupturas e pararem de furar bolha onde não deve, senão vão perder o protagonismo e serão ultrapassados por novos formadores de opinião.
Por favor, esquerdas: menos novela das nove e mais Brasil!!
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