Muita gente insiste em crer que a cultura é uma virgem imaculada que nunca sofreu assédio e nunca se corrompeu.
Ela sofre interferências que não podem ser vistas necessariamente como "inocentes". Em muitos casos, a cultura é corrompida e deturpada ao sabor de interesses escusos envolvidos.
Quando se fala em Culturalismo conservador, muitos, levando ao pé da letra as escolhas temáticas do sociólogo Jessé Souza, acabam vendo uma "guerra cultural" sem cultura, restrita a aspectos relacionados à Economia, Educação e, principalmente, Política.
Há muitos tabus nos debates culturais.
Fala-se tanto em "combater o preconceito", mas aqueles que mais pregam esta postura são os primeiros a manifestar os piores e preocupantes preconceitos.
É tanto preconceito que eu criei o termo irônico "sociedade sem preconceitos, mas bastante preconceituosa".
É tanto e mais preconceito do que se pode imaginar, que um livro como Esses Intelectuais Pertinentes... é boicotado por muitos por que pensam ser um desperdício.
Têm medo de gastar míseros R$ 50 e tantos, mais o frete, para adquirir o livro, mas com quantias superiores torram o dinheiro com livros mais supérfluos, de ficções medievais e auto-ajudas de quinta categoria.
Por que isso? Porque existe a ilusão de que tudo está às mil maravilhas, que o Brasil está culturalmente ótimo, só porque tem ofertas e espaços para tudo que é manifestação artístico-cultural.
O quadro de cultura não se mede por essas ofertas. Em tese, há espaço e manifestação para tudo, mas é sempre o pior que se destaca mais.
As vozes mais relevantes de certa forma são discriminadas, seja por falta de visibilidade, seja pelo boicote ou indiferença dados aos espaços de maior projeção.
O crítico competente mas complacente acha que o Brasil está "culturalmente saudável" por dois motivos.
Um é que ele está iludido com a esperança de que, havendo ofertas de qualquer expressão cultural - "basta ir procurar e, depois, achar" - , parece que o Sol cultural nasce para todos.
Claro que ele pode pensar assim, baseado no seu solipsismo. Se for lançado, por exemplo, um disco raríssimo de Nina Simone, o bom crítico tem condições de comprar.
Ele até escreve coisas maravilhosas e textos muito bons dos grandes músicos. Ou o mesmo se ele for jornalista de teatro, cinema e literatura. Mas passa pano, a pretexto da "imparcialidade" e da intenção de evitar conflitos, na mediocridade artística existente.
Mas o bom crítico pode comprar discos raros de jazz, de música brasileira mais antiga, pode completar a discografia de Miles Davis até sem sair de casa, comprando pela Internet e pagando pelo cartão.
O problema é que, para o brasileiro comum, só resta o ídolo medíocre que o bondoso crítico musical fica passando pano, num ato até de boa-fé, diferente da má-fé da intelectualidade "bacana".
O brasileiro comum vai ouvir o "zé da pisada" ou o "MC Pereba" que o crítico musical, bondosamente, resenhou movido pela Espiral do Silêncio, vendo "qualidades" na "esforçada" obra que faz os especialistas em MPB autêntica torcerem o nariz.
E aqui vemos a injustiça.
Claro que existe a segmentação cultural, que divide as pessoas conforme as afinidades culturais.
Mas a coisa está indo ao extremo, com a segmentação imposta pelo poder econômico.
O rapaz comum, de poder aquisitivo relativamente baixo, se quiser ouvir punk não pode montar a discografia dos Buzzcocks nem sequer do Agent Orange, tendo que se contentar com o que as pretensas "rádios rock", reles "Jovem Pan com guitarras", tocam nos limites de um "punk mais pop".
E o trabalhador que quer ouvir jazz? Vai se contentar com os standards que a "alta cultura padrão Domingão do Faustão" deixa passar, lembrando que standards não são jazz, mas música romântica que mistura jazz pasteurizado (Dixieland) com musicais orquestrados da Broadway?
Ou vai contentar com o som yuppie de Kenny G, que também não é jazz, mas musak para consultórios médicos tocado com clarineta e saxofone?
Os internautas tidos como "isentos" e "esclarecidos" vêm e virão com milhões de teorias para tentar sustentar que a situação cultural do Brasil é "das melhores em sua história".
Só que elas sempre esbarram em alguma contradição. Seja quando descrevem que a cultura de qualidade está, em tese, "mais acessível", ou quando, como quem vê cabelo em ovo, atribuem alguma "genialidade oculta" nos medíocres ídolos popularescos ou pop.
Mas se mesmo o problema maior do comercialismo musical, o jabaculê, está sendo relativizado e até positivado, a coisa fica muito grave.
Ver que o radialismo rock, para ser "vendável", precisa restringir sua programação ao hit-parade e contratar locutores engraçadinho de fala enjoada (tipo locutor da Jovem Pan), supostamente para "interagir com o público jovem", é de revoltar.
Culturalmente, isso tem um preço muito caro e dá para perceber por que os produtores das ditas "rádios rock" são pessoas facilmente irritáveis, sabendo da dificuldade em serem levados a sério.
No caso da Rádio Cidade, do Rio de Janeiro (que deixou o FM e agora só é webradio), sua canastrice como dublê de rádio de rock recebeu mais passagem de pano da mídia roqueira - incluindo crítica especializada local e boa parte dos órfãos da Flu FM - , mas ela fracassou.
A programação era tão ruim que enjoava até o mais histérico defensor da rádio.
Os locutores, então, além do estilo impróprio para rádios de rock com um mínimo de competência (anunciavam bandas de rock como se fosse "sertanejo" ou k-pop), não tinham a menor intimidade com o universo roqueiro.
E o que dizer da música popularesca, movida pelo jabaculê até a medula, mas finge que se desenvolve sem uma sombra sequer da prática jabazeira mais comezinha?
Que teorias conseguem sustentar a suposta genialidade que a "nação complacente" atribui quando passa o pano nos fenômenos popularescos da moda?
Não dá para comparar um Psirico ou um Wesley Safadão com, por exemplo, Jackson do Pandeiro.
Por mais que se multipliquem os argumentos que, artificialmente, ligam os popularescos aos músicos populares do passado, é ouvindo os discos que se tem a verdadeira ruptura do preconceito, aquela que, eventualmente, pode chegar a uma conclusão péssima e desagradável à turma da complacência.
O lundu do "Gaúcho", de Chiquinha Gonzaga, apelidado de "Corta-Jaca", é muito superior do que o "pagodão" cafajeste de É O Tchan. A comparação entre ambos, embora persistente, soa deslocada e desprovida de qualquer contexto de época.
Como, por exemplo, o costume de comprarar a rejeição do "funk" de hoje com a que o samba sofreu há cem anos. São rejeições diferentes, contextos diferentes.
O "funk" é rejeitado por uma sociedade muito aberta do que a de 1910. Em compensação, gente do nível da bolsonarista Antônia Fontenelle adora "funk".
Aliás, a forma que os supostos "sem preconceitos" falam do "funk", temos a falsa impressão de que o som é uma fusão de Velvet Underground com Nação Zumbi.
Isso é preconceito. Um preconceito bondoso, cordial, mas, acima de tudo, preconceito.
Quando se ouve um CD de "funk" ou uma apresentação do gênero, a decepção é inevitável. E tem muito "funk" que é claramente digno de estar naqueles números musicais da série "vergonha alheia", que existem na Internet.
E o que não está nesse critério se situa apenas nos limites de uma mediocridade constrangedora, até pelo seu complexo de superioridade que os funqueiros "de raiz", na sua síndrome de Dunning-Kruger musical, se acharem "melhores" do que Tom Jobim.
O "funk" é jabazeiro, como outros estilos "populares demais", mas a sociedade "esclarecida" porém passadora de pano, até para tentarem agradar o povo pobre, tentam fazer vista grossa a tudo isso.
Daí que o pensamento desejoso, mesmo vindo de jornalistas musicais competentes, vem à tona e tentam substituir a realidade, na medida em que cria uma narrativa que agrada a todos.
E aí vemos o quanto a bregalização cultural foi vista como um processo "puro", e que, culturalmente, até mesmo a gíria patenteada pela Jovem Pan, como "balada", surgiu carregada pelo ar que respiramos.
Os discursos para justificar toda essa pasmaceira de que "a cultura hoje está maravilhosa" e "não há crise cultural" atropelam conceitos de comercialismo e anti-comercialismo.
O anti-comercialismo vira "comercial" porque "precisa sobreviver financeiramente".
Já o comercial vira "anti-comercial" porque "se naturaliza no cotidiano das pessoas".
Ambas desculpas sem pé nem cabeça, conversas para boi e para o gado digital das redes sociais dormirem.
A bregalização cultural cresceu nos últimos 30 anos por conta de uma mídia aliada a forças sociais que exterminam agricultores a bala e apoiam incondicionalmente o governo Jair Bolsonaro. Os gerentes e coordenadores das rádios "ultrapopulares" operam como jagunços culturais do coronelismo vigente.
Se o Brasil está culturalmente "no seu melhor momento", por que deixamos que Jair Bolsonaro fosse eleito? Talvez uma leitura de Esses Intelectuais Pertinentes... possa buscar possíveis respostas.
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