Uma amostra de como a cultura brasileira vai mal é que os artistas de verdade existem e não são poucos, mas eles não têm o caminho aberto para eles.
De que adianta o crítico musical esclarecido ter em suas mãos a melhor música, se o público médio, mesmo aquele que consome a "MPB do Faustão", não tem acesso a ela?
Vivemos duas bolhas, uma gigantesca e outra, mais personalizada e menor.
A bolha gigantesca só quer lacração, música popularesca, idiotização cultural, fala portinglês e gírias hipermidiáticas como "balada" (©Jovem Pan).
É um pessoal que só quer curtição e, quando lê livros, refere literatura analgésica: auto-ajuda, ficção medieval e bobagens tipo Minecraft, cachorros com nomes de músicos estrangeiros e os aberrantes "livros para colorir".
A bolha menor é, na verdade, uma categoria que define diferentes bolhas que não podem ser chamadas de segmentos porque são nichos ainda mais restritos e medidos pelo poder financeiro.
Sim, porque são "panelas" de pouquíssimas pessoas mais cultas que podem ir de carro a uma adega situada numa colina distante para ouvir aquele tipo de música sofisticada que gostam.
São aqueles que ouvem jazz, rock alternativo, rock progressivo, música erudita ou os sons experimentais que existem nas bibliotecas de áudio, como o epidemic sound.
Geralmente um punhadinho de pessoas que têm dinheiro de sobra para comprar discos raros, vinis de R$ 500, ver apresentações raríssimas de músicos mais requintados, ler livros, ver filmes e ver peças de teatro mais complexas.
Gente que tira de letra até mesmo o mais complexo do complexo cinema eslavo, ou que tira de letra o elenco do selo fonográfico Elenco, que acolheu bossanovistas.
É mais ou menos se, na Idade Média, tivéssemos as praças públicas e os feudos.
Não, não é legal. Quem não tem muito dinheiro e se interessa por música de qualidade não pode sequer se enturmar, porque não tem dinheiro para frequentar os mesmos lugares e ir e vir daqui e dali com segurança.
Não temos um cenário cultural bom. Temos um cenário cultural péssimo. Senão não teríamos eleito Jair Bolsonaro nem teríamos dificuldade em tirá-lo do poder.
Por muito menos, ou melhor, por motivo nenhum, Dilma Rousseff foi tirada do poder, há cinco anos.
E aí? Desde 2016 muitos brasileiros fingem para si mesmos acreditarem que tudo está ótimo, que o Brasil está às mil maravilhas e que existe uma "perfeição da imperfeição", ou seja, uma imperfeição que ninguém está disposto a melhorar porque "bom já está".
São zonas de conforto de um Brasil que há muito perdeu sua relativa grandeza que em curtos períodos, como 1958-1963, 1984-1988, 1993 e (descontando o fator cultural, que continuou degradante - ver Esses Intelectuais Pertinentes...) 2003-2014, viveu e parece não recuperar.
Não dá para passar pano na imbecilização popularesca dos últimos trinta anos.
Ver que, com tanto baixo nível, tem gente que acha Chitãozinho & Xororó e Michael Sullivan "geniais" é constrangedor.
Só porque se tratam de canastrices musicais mais antigas, não quer dizer que o canastrão do passado se transformou num mestre, só porque depois dele vieram coisas piores.
Me preocupa essa complacência toda, vinda até de gente considerada competente e esclarecida, de críticos musicais que jogaram o senso crítico na lata do lixo.
A Espiral do Silêncio e a Síndrome de Dunning-Kruger são doenças que pegam mais que a Covid-19.
Tem o crítico musical competente, aquele capaz de escrever um belíssimo artigo sobre Cassiano, o grande artista de soul brasileiro que faleceu no último 07 de maio, aos 77 anos, mas que, pela Espiral do Silêncio, tem que passar pano em mediocridades como o cantor Belo.
E tem a Síndrome de Dunning-Kruger de, por exemplo, o "funk de raiz" de 1990, cujos MCs faziam arremedos satíricos de cantigas de roda e hoje se acham superiores a Tom Jobim.
Cassiano é mais um dos grandes artistas que vão embora, deixando a MPB autêntica mais órfã.
As rádios de MPB não ajudam na renovação de talentos, preferindo uma leva de MPB carneirinha, que mais parece música para luau de adolescentes.
Não há alguém com neurônios fervendo, com sangue correndo pelas veias, fazendo uma MPB visceral.
O que temos ou é a MPB fofinha, na melhor das hipóteses, e, na pior, ídolos popularescos fazendo covers oportunistas de sucessos da MPB.
Cassiano, famoso por canções como "Primavera", sucesso na voz de Tim Maia, "A Lua e Eu" e tantos outros, gravou poucos discos e seu talento, como muitos outros, estava à margem do receituário comercial, mesmo levando em conta um ritmo de sucesso nas paradas dos EUA.
Isso porque a soul music brasileira sempre adaptou a excelente qualidade de nomes como James Brown, Stevie Wonder, Marvin Gaye, Otis Redding, Al Green, Aretha Franklin e outros numa linguagem bem brasileira, a partir do próprio exemplo de Wilson Simonal.
Simonal, embora fizesse um estilo híbrido, pode ser, de certa forma, um dos pioneiros do soul brasileiro, e abriu caminho para nomes como Tim Maia, Hyldon, Cassiano, Banda Black Rio, Sandra de Sá etc.
Até a Rosana Fiengo, injustamente conhecida por uma fase menor, cantando a versão de "The Power of Love", de Jennifer Rush, que aqui virou o hino trash "O Amor e o Poder", tinha uma ótima fase soul nos anos 1970.
E Cassiano, aliás, Genival Cassiano, era um paraibano que, nos últimos anos, parecia um pacato senhor de idade, mas teve a coragem de, com uma discografia breve, deixar sua marca de grande expressividade na música brasileira.
Eu ainda vou parar para ouvir a música dele, mas, como jornalista e pesquisador, vejo por outras fontes que o valor dele é indiscutível.
Pior é quem curte a "MPB do Faustão" (ou seja, a MPB que o Domingão do Faustão e as trilhas de novela liberam para o "povão" ouvir), que só elogia Cassiano sem ouvir algo além que "Primavera" na gravação de Tim Maia.
Esse pessoal acha normal é ouvir o "pagode romântico" fantasiado de um soul pasteurizado e gosmento, ou o pretenso rap com vocalistas com voz de trombadinhas.
Daí a cultura estar num cenário ruim, aliás num cenário péssimo, que deixa uma infinidade de músicos brasileiros desprezada até morrerem e serem bajulados postumamente por quem nunca ligou para eles.
Foi assim com Raul Seixas, Nara Leão, Renato Russo, Renato Rocha, Cassiano. Belchior, em vida, era ridicularizado pelos sumiços no fim da carreira, enquanto que o "normal" era Belo se promover com factoides próprios de uma subcelebridade.
Temos que encarar as coisas com realismo até certo ponto distópico. A Covid-19 está ceifando famílias, Bolsonaro ainda não saiu do poder e o pessoal parecendo criancinhas brincando no paraíso!
Deve ser muito livro de auto-ajuda, muito livro de ficção medieval, muita curtição, muita lacração, muito portinglês (os "dialetos" em inglês do português mal falado do gado humano identitarista).
Se o pessoal lesse Esses Intelectuais Pertinentes... em vez de bobagens do tipo "cavaleiro ou bruxa tal e o segredo do cacete" ou "o poder do f***-se", as pessoas compreenderiam melhor a situação em que chegamos.
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