Em atitude bastante controversa, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva se reuniram em um almoço ontem e decidiram se aliar para combater Jair Bolsonaro.
Lula quer formar uma frente ampla e, desta forma, ser eleito para recuperar o país dos prejuízos causados por Bolsonaro, que com seu descaso em relação à Covid-19 deixou que morressem mais de 440 pessoas, até agora.
Mas, pergunta-se: vale a pena o PT se aliar ao PSDB para tal finalidade?
O PSDB foi um dos artífices do Golpe de 2016, quando Dilma Rousseff foi tirada do poder, seu vice Michel Temer saiu do armário e se mostrou direitista e o caminho se abriu para Bolsonaro, sob a desculpa do "combate à corrupção".
De repente, o jogo virou. Aparentemente.
A Operação Lava Jato saiu desmoralizada. Sérgio Moro teve seus processos anulados pelo Supremo Tribunal Federal.
As instituições que promoveram o golpe político de cinco anos atrás, como o Judiciário, a grande mídia e o mercado, passaram a ser mais tolerantes com Lula.
De repente, até Aloysio Nunes, um tucano mais direitista, tornou-se favorável a Lula.
A meu ver, parece bom demais para ser verdade.
Não que eu vá bater panelas para rejeitar essa aliança, afinal ela é até melhor do que Jair Bolsonaro sendo reeleito e endurecer de vez.
Mas não será a volta das forças progressistas que sonhamos.
Desconfio que o PT é que tenha cedido vários pontos de seu programa para se tornar viável para 2022.
É como desconfio em relação à Bolívia, em que parte de seu patrimônio mineral deve ter sido vendida para que o golpismo político fosse revertido.
O PT vai deixar a Petrobras se encolher e perder o setor de venda de combustíveis - com a BR Distribuidora se tornando empresa totalmente estrangeira, em breve - , além de perder também o pré-sal para os gringos.
E vai deixar, provavelmente, a Eletrobras e os Correios serem privatizados. E vai superestimar o Auxílio Emergencial, como foi feito com o Bolsa Família, sem que se revertam retrocessos trabalhistas.
A Frente Ampla que faz o petismo e o tucanato esquecerem suas rivalidades é mais complexa do que aquela que se formou entre 1966 e 1968, portanto, há 55 anos.
Os arquirrivais Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, frustrados por verem a campanha presidencial de 1965 ser cancelada pela ditadura militar, que demonstrou ter sido permanente durante duas décadas, resolveram esquecer as desavenças e se aliarem.
Em 1966, eles se reuniram quando Kubitschek estava no exílio, em Portugal, e resolveram fazer um acordo, que é se unirem para um movimento de redemocratização do Brasil.
O movimento era conhecido como Frente Ampla. Naquela época, havia pressão para que o Brasil voltasse à democracia, pedindo o fim da ditadura militar.
A cultura brasileira vivia o engajamento da MPB dos festivais, do teatro interativo e das artes plásticas provocativas, além da atuação do Cinema Marginal, que propunha uma temática crítica mais moderna e radical que o Cinema Novo, acusado de se acomodar após o golpe de 1964.
Os estudantes protestaram antes de 1968, porque imediatamente reagiram ao projeto do ministro Flávio Suplicy de Lacerda, sustentado pelo apoio MEC-USAID, que propunha privatizar as universidades, tecnocratizar o ensino superior e criar uma entidade substituta da UNE vinculada ao poder ditatorial.
Já eram sangrentos os confrontos entre estudantes e policiais em 1966, o que mostra que os anos 60 foram muito mais de um mero biênio que foi o de 1968 e 1969.
E aí a Frente Ampla de JK e Lacerda contaram com o apoio de João Goulart, então exilado no Uruguai. Leonel Brizola não aderiu por desconfiar dos propósitos dos dois idealizadores.
Na época, a juventude via a Frente Ampla com reservas. A MPB dos festivais interagia mais com os jovens universitários do que dois direitistas moderados que antes haviam sido rivais políticos.
Mesmo assim, a Frente Ampla começava a crescer, mas em 1968 a ditadura militar declarou o movimento ilegal.
Apesar disso, as pressões da sociedade brasileira contra a ditadura, entre 1966 e 1968, davam a crer que a redemocratização era certa.
O sucesso da Passeata dos Cem Mil, na Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro (então capital da Guanabara; a hoje provinciana e decadente Niterói era capital do Estado do Rio de Janeiro e mostrava sua imponência na época), dava a crer que 1968 terminaria com a ditadura dando lugar à democracia.
Grande engano. A ditadura endureceu ainda mais e veio o longo pesadelo do AI-5, dez anos que pareciam uma eternidade.
E como está o Brasil hoje?
Politicamente, temos a desidratação do governo Jair Bolsonaro, alimentada pelas mentiras de depoentes ligados à sua equipe ministerial, como Fábio Wajngarten, Ricardo Salles e Eduardo Pazuello, para a CPI da Covid.
Bolsonaro parece politicamente isolado e perdendo apoiadores. E dentro de antigos apoiadores, também há desentendimentos que rendem processos judiciais, como Luciana Gimenez contra Antônia Fontenelle.
Mas isso ainda não é sinal de festa. Em certos aspectos, o Brasil está culturalmente pior.
No lugar da corajosa MPB dos festivais, temos a supremacia absoluta de ritmos popularescos respaldados por oligarquias empresariais das mais diversas, das rádios "populares" a companhias multinacionais.
As esquerdas ainda se iludem com o "funk", classificado como "maior manifestação cultural do país", quando ele não é mais do que um ritmo comercial que espetaculariza a pobreza e reduz as causas identitárias a meras mercadorias de consumo.
A situação é tão grave que críticos musicais com alguma competência estão passando pano nos canastrões da geração brega dos anos 1980-1990.
São os chamados neo-bregas (como Michael Sullivan, Alexandre Pires e Chitãozinho & Xororó), que ganharam a respeitabilidade que nenhum emepebista hoje tem, sem ter, todavia, o mérito e o talento necessários para tamanha reputação.
O teatro está parado, mas é por razão da pandemia. O cinema brasileiro tornou-se comercial ou, quando muito, desprovido de senso crítico aprofundado, perdido na ilusão de que ser imparcial e objetivo é ficar passando pano em problemas mais complexos.
A Rede Globo que estava em ascensão em 1966 sofre sua decadência 55 anos depois, apesar das tentativas de dialogar com a "nação lacradora" das redes sociais.
A Record que transmitiu festivais da MPB, depois da TV Excelsior, hoje é uma propriedade do bispo da Igreja Universal, Edir Macedo, que sinaliza voltar a apoiar Lula depois que viu que Bolsonaro não lhe socorreu na crise que a instituição neopenteque sofre em Angola, ameaçada de expulsão de lá.
É um pano de fundo terrível, bem menos articulado que o de 55 anos atrás.
E aí perguntamos se a aliança entre Lula e FHC é boa, que a direita moderada apoiando o petista será benéfica.
Para mim, ela não será necessariamente benéfica, a longo prazo, mas tem sua vantagem a curto prazo que é uma união condicional para derrubar o bolsonarismo.
É um movimento heterogêneo, que momentaneamente pode ser fundamental para o fim de um ciclo político macabro.
Mas até que ponto Lula, se for eleito, irá conduzir seu projeto político? Com essas alianças, há a desvantagem que é a castração de sua performance política. Algo comparável à fase parlamentarista de João Goulart, entre 1961 e o começo de 1963.
E se o bolsonarismo reagir e tentar explorar a ideia de que "toda essa corja se reúne em torno do lulopetismo"?
As esquerdas brasileiras se iludem com os "brinquedos culturais" da direita comportada, que herdaram valores, símbolos e até mesmo personalidades que representaram o ideário conservador da ditadura militar ou o legado que derivou, por exemplo, na cultura popularesca que gourmetiza a pobreza.
Uma parlamentar do PSOL insistiu na tese de que o "funk" é "a maior manifestação cultural do Brasil". Um equívoco, por ser uma tese sem pé nem cabeça que é defendida pela exaltação emocional, que garante avaliações subjetivistas, sem conexão com a realidade.
O "funk" é um dos "brinquedos culturais" que distraem as esquerdas desavisadas, gerações mais jovens que nunca vivenciaram a trajetória histórica de um Francisco Julião (das Ligas Camponesas), um Paulo Freire, um Carlos Marighella, um Geraldo Vandré.
As esquerdas mais jovens, nascidas dos anos 1960 para cá, imaginam o Brasil progressista como se fossem os núcleos popular e classe média (classe trabalhadora, na avaliação de Jessé Souza) da novela das nove da Rede Globo.
Criam seus "heróis" a partir do culturalismo musical, religioso e esportivo que, por serem conservadores moderados (servem de anestesia para as tensões sociais das classes pobres), não devem ser considerados como progressistas. Mas são.
E são assim considerados por conta de uma esquerda infantilizada e boba, exageradamente identitarista, mas que, em contrapartida, pouco se importa com o acúmulo de sem-teto que atinge as ruas de todo o Brasil.
Pouco querem saber dos conflitos de terras, dos problemas vividos por trabalhadores e desempregados, só se solidarizando quando isso permite a lacração da Internet necessária para parecer bem na fita nas redes sociais, ou então monetizar e ganhar seguidores.
E é essa esquerda infantilizada, que vê o Lula não como o operário que quer melhorar o Brasil, mas como uma espécie de reboot de Dom Pedro II com poderes de Dom João VI, o grande problema no nosso país.
Uma esquerda abobalhada, sentimentaloide e piegas, que ouve "funk" e acha que Teologia do Sofrimento e Teologia da Libertação são sinônimos (na verdade, são antônimos extremos), é presa fácil para o bolsonarismo.
Para essas esquerdas, tanto faz se o PT se aliar com o PSDB, com o "médium de peruca", com o funqueiro que caiu de um prédio e morreu, com o empresário mão-de-vaca e com o craque de futebol fanfarrão, só querem saber de ver Lula presidindo o país, ainda que sob condições vulneráveis.
O anti-petismo ainda está forte, o culturalismo popularesco pode parecer alegre e divertido, mas é conservador, a fé exagerada, que não salvou a vida de Paulo Gustavo, muito menos salvará o Brasil de um agravamento das convulsões sociais. Cabe às esquerdas pensar nisso, com coragem e autocrítica.
Esquerdas assim são fracas, porque emotivas demais, sem um pingo de desconfiômetro, de senso crítico, de um pouco mais de dedo tocando na ferida. Porque a situação do Brasil não está boa. O Brasil não é o "núcleo pobre" da novela das nove da Globo e nem é a doce vida do Instagram e Tik Tok.
Daí o grande risco dessas esquerdas botarem tudo a perder com seu sentimentalismo piegas e fantasioso. Seu excesso de emotividade vai dar a impressão de que as esquerdas são idiotas.
E, com isso, será mais munição para os bolsonaristas. E, neste caso, as eleições de 2022 correm o risco até de serem canceladas.
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