Tem gente que não admite que o Brasil está culturalmente ruim, digamos, péssimo.
Gente que pôs o golpe político de 2016 debaixo do tapete. Uns, porque nunca admitiram sua existência. Outros, porque chegaram a admitir, mas esqueceram.
Há gente, mesmo nas esquerdas, que se esqueceu do golpe e dos estragos causados. Vão naturalizando os retrocessos, como fez com os retrocessos da ditadura militar.
A "cultura" brega-popularesca, que era o mote do entretenimento promovido pela mídia solidária aos generais ditadores, foi adotada em 2002 pelas esquerdas entre os muitos "brinquedos culturais" da direita.
O baixo-clero da política brasileira, composto por partidos de direita fisiológicos, se aliou à esquerda liberal representada pelo então presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva.
Aí esquecemos que toda aquela breguice descrita por Paulo César de Araújo - então um intelectual orgânico que o tucanato cultural lançou para abafar a crise do governo Fernando Henrique Cardoso (marcada pela tragédia da P-36 e pelo "apagão") - foi um patrimônio cultural da direita.
Até Waldick Soriano, que apesar da censura de suas músicas, mais por mal entendidos do que por qualquer suposto indício de subversão, exaltava a ditadura e era machista, foi reembalado para ser o "esquerdista fofinho" para a pequena burguesia das esquerdas de Oslo.
E aí vieram inúmeras narrativas que fizeram a bregalização cultural, já ascendente no período ditatorial, hegemônica a partir da Era Collor, tornar-se totalitária a partir dos anos 2000.
Em 1986, quando eu estudava no Liceu Nilo Peçanha em Niterói, secundaristas emprestavam discos do rock das Baratos Afins e de bandas não-massificadas como Humple Pie e o desconhecido Nektar.
Entre parênteses. Secundarista era o que se chamava o aluno de ensino médio, para quem é mais jovem e não acompanhou a antiga classificação.
Já em 2014, estudantes universitários celebravam a graduação usando a funqueira Valesca Popozuda como "paraninfa". E isso na mesma Niterói, na Universidade Federal Fluminense!
A que ponto chegamos. E o que mais aflige é que tem gente séria, gente até com gabarito e competência, como críticos musicais, jornalistas políticos e acadêmicos realmente competentes - eles não devem ser confundidos com a intelectualidade "bacana" - que passam pano em tudo isso.
Pode ser até efeito da espiral do silêncio, que faz muito pensador de qualidade preferir a complacência do que provocar conflitos com os formadores de opinião oficiais.
E aí temos uma realidade comparável à de uma tragicomédia surreal: a felicidade de um considerável número de pessoas nesse período pós-golpe de 2016.
Veio Michel Temer com seu "pacote de maldades", influenciado pelas pautas-bombas de Eduardo Cunha, e a "reforma" trabalhista.
Nas redes sociais, a maioria das pessoas estava feliz. E não é o pessoal necessariamente rico.
E aí veio a eleição de Jair Bolsonaro, uma figura nefasta e ameaçadora.
Nas redes sociais, a felicidade continuava reinando.
Veio a pandemia da Covid-19 e o Brasil vive um ritmo descontrolado de mortes só comparável ao período colonial, quando a falta de higiene e as baixas condições da vida permitiam as mortes prematuras em grande quantidade.
E o que aconteceu? Felicidade, nas redes sociais.
O Brasil vive uma falsa impressão de que tudo está bem para uma parcela de cidadãos, que não é necessariamente rica nem de direita.
Gente de esquerda também vive esse momento feliz, essa alegria sem motivo, essa esperança por nada.
O país está despencando e o pessoal está feliz. E muita gente tatuada. Como dizia Zé Ramalho: "Vida de gado, povo marcado, povo feliz!".
É a ilusão da liberdade, sendo esta palavra uma concessão da Folha de São Paulo, por meio de uma joint-venture com a Globo, o SBT e a Jovem Pan (mais a 89 FM e a Rede TV!).
Por isso o pessoal pensa que o Brasil está culturalmente às mil maravilhas.
A ilusão das "bolhas" e da "oferta" de diversidade cultural faz com que até o mais cauteloso pensador ache que o Brasil está sob o céu de brigadeiro cultural.
Pensamos que tudo está bem porque a oferta de bens culturais é diversificada. Mas o problema não é haver ou não oferta, é ver qual é a cultura que se destaca e é mais influente.
De que adianta as "bolhas" terem em mãos um acesso relativamente fácil a raridades do jazz, do rock, da Bossa Nova, da música erudita, ou a boas peças de teatro e bons livros, se é sempre um clubinho pequeno que nem chega a ser realmente um segmento.
Isso porque o segmento cultural é um grupo social maior do que as "bolhas" culturais, embora fosse também um público selecionado.
Mas se até os críticos mais esforçados de hoje passaram a passar pano até na mediocridade cultural, achando tudo genial, então a coisa está feia.
Os mesmos nomes musicais que representavam a baixaria cultural de 1990 agora são vistos como se fossem "gênios visionários".
Antes um problema a ser questionado pela Teoria da Comunicação, o Big Brother Brasil agora é tratado como se fosse fenômeno cult.
Subcelebridades e músicos medíocres que ficam mais de duas semanas sem aparecer na mídia já causam preocupação e, quando voltam, já são considerados "preciosidades vintage".
Qualquer bobagem com mais de 25 anos de existência é "clássico". Qualquer nome comercial que rendeu alguma polêmica com maior projeção, por mais tola que fosse, vira "alternativo".
A qualidade cultural do nosso mainstream está ruim. Não podemos dar margem a relativizações, pois são coisas de quem tenta driblar a lógica, brigando com os fatos, ou quer agradar todo mundo.
Não há como comparar um sem-número de nomes popularescos surgindo que nem grama no Brasil de hoje com a profusão de grandes bandas de rock psicodélico nos EUA e Reino Unido de 1966-1967.
A melhor ruptura de preconceito é ouvindo CDs e vendo performances, em vez de nos prendermos com narrativas vitimistas que tratam os campeões de vendas e execuções musicais como coitadinhos.
E a constatação não é positiva. A mediocridade é gritante, sobretudo no "funk", que no entanto persiste no discurso coitadista, que já torrou a paciência de qualquer budista.
E vemos o quanto nosso Brasil virou uma grande província, e o complexo de vira-lata hoje é levado às mais extremas consequências. E só se exige pedigree para esse complexo.
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