No contexto da retomada ultraconservadora vigente desde 2016, é irônico que patrimônios históricos e culturais sejam perdidos ou ameaçados.
Lembra o apetite dos medievais em destruir o legado da Antiguidade clássica, não bastasse as batalhas e guerras que já destruíram muita coisa desse período.
Ou, no microcosmo do macrocosmo, os incêndios que fizeram perder muitos acervos de televisão durante a ditadura militar.
O incêndio da Catedral de Notre Dame, em Paris, é comparável ao do Museu Nacional no Rio de Janeiro.
É irônico, também, que, se o Rio de Janeiro se modernizou para se tornar a Paris dos trópicos, a Paris dos últimos tempos decai como se fosse o Rio de Janeiro do Velho Mundo.
O incêndio da catedral de Notre Dame, pelo menos, foi causado, provavelmente, por um acidente num trabalho de reforma do edifício, e seu acervo já havia sido deslocado para um salão em um outro prédio.
Não foi o caso do Museu Nacional, cujo fogo - causado pelo mesmo motivo do trágico incêndio no centro de treinamento do Flamengo, um curto-circuito de um ar condicionado - destruiu relíquias que desapareceram para sempre e só boa parte delas sobrevive em fotografias e filmagens.
A Catedral de Notre Dame não teve sua estrutura destruída e o presidente Emanuel Macron prometeu que irá reconstruir o prédio, um dos mais tradicionais monumentos da capital francesa, construído em 1163.
A Cadetral de Notre Dame tornou-se conhecida em muitas citações literárias, sendo a maior delas o livro Notre-Dame de Paris, escrita por Victor Hugo em 1831, do famoso personagem Quasimodo, o Corcunda de Notre-Dame.
Embora essa reconstrução fosse feita reconstituindo a estética gótica original, o desastre é um reflexo do pouco cuidado com nossas memórias.
Afinal, os patrimônios culturais são tidos como "impalpáveis" pelas gerações recentes que os veem com indiferença.
O que corresponde à cultura de qualidade não é mais "coisa cotidiana", mas mitificações distantes, manifestas em documentários, tributos, peças de teatro, exposições etc.
Cultura de verdade virou coisa de museu e, se os incêndios destroem esse patrimônio, pior para nós.
Enquanto isso, o que é "cultura de verdade", no sentido de "cultura vivida", é o ultracomercialismo musical, são as subcelebridades, o besteirol nas redes sociais, o sensacionalismo policialesco.
E essa "cultura vivida" ainda é paparicada pela intelectualidade "bacana" no Brasil. Nos EUA e Reino Unido, pelo menos essa "cultura" é assumidamente mainstream, não posa de vanguarda nem promete a salvação do planeta, como o "popular demais" daqui.
Para os mileniais, a memória histórico-cultural é uma coisa sem importância, e os únicos "patrimônios imóveis" que conhecem são as boates que frequentam, seus apartamentos e os lugares de rua para suas festas.
E, neste caso, a coisa se agrava quando se observa a imprudência no Rio de Janeiro soterrado pelo seu pragmatismo.
Uma jovem lindíssima, Maria Fernanda Ferreira de Lima, de 20 anos, estava na produção de uma festa no Terreirão do Samba, quando resolveu encostar numa barra de metal energizada.
Ela levou um choque violento que lhe deu quatro paradas cardíacas antes de falecer, na madrugada de anteontem, no Hospital Sousa Aguiar.
Eu me lembro que, no Elevado Gonçalves, de Salvador, barras energizadas apoiam o transporte e há placas de aviso ordenando que pessoas se afastem do local para evitar tais tragédias.
Não houve um aviso sequer para as pessoas se afastarem da barra de metal e a menina, por desatenção, acabou com sua vida ao tentar descansar junto a um material perigoso.
Não bastasse a trilha sonora culturalmente duvidosa, o "funk", o acidente também mostra a cultura de imprudência que envolve sobretudo os jovens do Rio de Janeiro, que nem para proteger seus amigos têm a cautela de fazer.
O local do evento não tinha autorização do Corpo de Bombeiros para funcionar. Isso significa que nenhuma vistoria técnica foi feita previamente para verificar as condições de segurança do local.
Uma vida foi simplesmente jogada fora pela imprudência que a mentalidade pragmática do Rio de Janeiro mantém, entre tantos defeitos que a tsunami de retrocessos causou no Estado que outrora era referência sócio-cultural para o Brasil.
Ao menos, na decadente Paris de assaltos, atentados terroristas e sujeira nas ruas, a Catedral de Notre Dame poderá ser reconstruída, reproduzindo o padrão arquitetônico perdido no incêndio.
Mas Maria Fernanda só voltará na próxima encarnação, e será muito tempo a esperar para ela viver novamente seus 20 anos e tocar a vida para a frente.
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