Qual é a fronteira entre a provocação que estimula o debate e a provocação que se reduz a um fim em si mesmo?
A provocação que estimula o debate não é uma exposição gratuita do mau gosto, não é o mau gosto visto como "bandeira libertária" mas uma expressão de situações que desagradam a muitos no sentido de estimular debate e reflexão.
Depois do Queermuseu, que o Santander Cultural, de Porto Alegre, decidiu não mais reabrir - a exposição se encerraria daqui a uma semana, mas foi cancelada por pressões do Movimento Brasil Livre - , outro evento artístico causou séria polêmica nos últimos dias.
Ocorria a 35ª edição do Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Eram vários eventos de artes plásticas, como ocorria em cada edição.
Mas aí houve uma apresentação performática.
O bailarino e coreógrafo Wagner Schwartz, no último dia 26 de setembro, estava nu e fazia uma interpretação baseada na obra O Bicho, de Lygia Clark.
Intitulada La Bête, a performance consistia em Wagner estar no lugar de uma das obras da artista, e fazia uma leitura interpretativa do livro, enquanto permanecia sentado ou deitado.
Num dado momento, uma senhora e sua filhinha pequena se aproximavam do rapaz e a menina tocou as mãos e os pés dele, sem que houvesse nisso qualquer conotação sexual.
A sociedade moralista reagiu, furiosa, acusando a manifestação artística de "pedofilia" e "erotização infantil".
O ex-ator e ativista de direita Alexandre Frota chegou a visitar o local para manifestar seu repúdio a La Bête.
No último dia 30, um protesto ultraconservador resultou em violência, com os opositores do evento agredindo funcionários com socos e xingações.
Há casos de erotização infantil nos "bailes funk" e nos eventos de "pagodão" na Bahia e muitos "bacanas" aceitam, achando que isso é "iniciação sexual das jovens das periferias".
Durante o fenômeno machista do É O Tchan, nos anos 90, estimulava-se as crianças do sexo feminino se vestissem de dançarina do grupo e repetisse os passos rebolativos.
Muitas dessas meninas viraram "musas populares" que só vivem de mostrar o corpo e que, com o fim do portal EGO, agora têm que se virar em espaços menores como o portal BOL.
Mas o caso de La Bête foi apenas um contato sem qualquer tipo de sensualidade.
Era apenas uma relação performática, mas que alude também a um exercício escolar de Biologia.
Era algo para estimular reflexão e participação do público, e, evidentemente, isso não pode agradar muitas pessoas, mas nada tem de maldoso ou obsceno.
Wagner Schwartz estava fazendo sua performance teatral, o nu que ele representava não tinha conotação erótica, mas antropológica. O nu evocava apenas a condição natural do ser humano.
Na onda conservadora em que vivemos, isso não faz diferença, porque a cegueira moralista de agora segue a cegueira libertina de outrora.
Há cinco anos, até a mais explícita erotização infantil num "baile funk" era vista pela intelectualidade "bacana" como "iniciação sexual das jovens das periferias".
Hoje, mesmo uma obra como a performance de La Bête, sem conteúdo sensual, é vista como "apologia à pedofilia".
Vivemos tempos muito, muito sombrios. E ver que os reacionários são capazes de atuar com violência ou mandar suspender uma exposição artística, neste caso a do Queermuseu, é assustador.
E isso há quase cem anos da Semana de Arte Moderna de São Paulo, evento que começou a abrir as mentes culturais de nossos brasileiros.
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