Ainda não obtive o novo livro do sociólogo Jessé Souza, também professor da UFF e um dos mais instigantes intelectuais de esquerda da atualidade.
Pelas resenhas que leio, o novo livro dele, A Elite do Atraso, tem como objetivo questionar a tese de que o patrimonialismo tornou-se a base das elites brasileiras.
Segundo Souza, a sociedade se formou a partir da escravidão, pondo em xeque a tese da "sociedade cordial" trazida pelo livro Raizes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, pai de Chico Buarque.
Jessé defende a ideia de que a mídia, a justiça e a intelectualidade, em quase unanimidade, estão a serviço dos detentores do poder.
Desta forma, os três se comprometem a lutar para manter as classes populares num processo de letargia.
Os livros de Jessé, embora não sejam necessariamente focalizados na cultura popular, podem explicar muito a influência recente das esquerdas festivas e da intelectualidade "bacana" que, durante cerca de quinze anos, prevaleceu no Brasil.
Gilberto Maringoni, em seu texto sobre A Elite do Atraso, comentou que o livro de Sérgio Buarque não possui rigor científico.
Maringoni define o livro do historiador como bem escrito e o define como uma crônica histórico-antropológica dotado de conceitos vagos e frases de efeito.
Conforme o texto de Maringoni, Francisco Weffort, da "turma da USP" (elite intelectual da Universidade de São Paulo que nos anos 80-90 dominou a instituição), foi um dos herdeiros da linha de abordagem de Sérgio Buarque.
Weffort era ligado à Teoria da Dependência de Fernando Henrique Cardoso e um dos principais ideólogos que reprovaram o trabalho do ISEB e do CPC da UNE.
Sabe-se que, no começo da década de 1960, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros e o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes se empenhavam em repensar o país.
Desde as questões econômicas até a cultura musical popular, havia um amplo ciclo de debates, polêmicas e até conflitos, mas dentro de uma livre expressão e transmissão de ideias.
Weffort desqualificou os dois, ISEB e CPC da UNE, como "fábricas de ideologias".
Podemos inferir que, no caso da unidade ligada à entidade estudantil, superestimou o trabalho de Carlos Estevam Martins e Oduvaldo Vianna Filho, que não eram os únicos na instituição.
Jessé Souza chama a atenção da atuação da esquerda oitentista contra o nacional-desenvolvimentismo e até mesmo a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), influenciando um certo advogado que iniciava carreira política na época.
Este advogado, Michel Temer, está agora contando os dias para pôr em prática a dita reforma trabalhista que praticamente eliminará as proteções legais dos direitos dos trabalhadores.
Esses setores das esquerdas teriam, na verdade, um liberalismo enraizado, por conta de sua formação ideológica e da influência dos tecnocratas acadêmicos da USP de então.
No âmbito da cultura popular, podemos inferir que esses setores das esquerdas impulsionaram a intelectualidade "bacana" que passou a influir de 2001 até pouco tempo atrás.
Se bem que um precedente ocorreu em 1996, com o texto "Esses Pagodes Impertinentes...", ensaio do historiador e sociólogo baiano Milton Moura sobre o "pagodão" do É O Tchan e derivados.
Diante do comentário de que Raízes do Brasil não tinha rigor acadêmico, me lembro que, ao ler "Esses Pagodes Impertinentes..." tive a mesma constatação. A visibilidade de Moura compensou essa falha, na época.
Foi o primeiro texto a tratar abordagens caricaturais das classes pobres pelo entretenimento comercial como se fosse "cultura de verdade".
Era a folclorização do mercado a partir da utopia da "pobreza linda" e da "periferia legal" trazida pelos intelectuais do brega-popularesco.
O processo se deu com maior intensidade a partir de 2000, quando a bregalização se confundia com um "tropicalismo de resultados", baseada em conceitos rasos de "provocatividade" e de "mau gosto", este promovido a uma pretensa causa libertária.
Esses intelectuais já renegavam o legado do CPC da UNE, talvez visto como "coisa do passado".
Eles podem ser enquadrados no que Jessé define como agrupamentos esquerdistas dentro do PT, PSOL e em universidades a partir da USP.
Ele estabelece paralelo desses agrupamentos, à esquerda, aos que, à direita, se aglutinam através do PSDB e do Instituto Millenium e, podemos acrescentar, o Movimento Brasil Livre.
Aí eu reflito e vejo até que ponto o Coletivo Fora do Eixo e o Movimento Brasil Livre não devem ser vistos como dois lados de uma mesma moeda.
Os dois lados quase se unificaram no apoio a Marcelo Bretas, o "Sérgio Moro" carioca.
Mas haviam também se irmanado quando viam a cultura popular sob o viés do "deus" mercado.
O uso da expressão "periferia", até nas páginas de Caros Amigos, Fórum, Brasil de Fato e Carta Capital, tempos atrás, era o uso de um termo difundido por FHC.
A defesa do "funk" como um paradigma desse suposto folclore movido por intenções mercadológicas, também reflete a herança do "mito da cordialidade" e da inexistência de conflitos de classes.
Esse conflito era substituído por um arremedo: as imaginárias "elites" apavoradas com o grotesco funqueiro contra a "livre manifestação das periferias" da pobreza glamourizada.
Críticos conhecedores de cultura popular autêntica e que entendiam profundamente o legado original do samba carioca nos morros eram demonizados pelas esquerdas festivas que abraçavam o proselitismo dos intelectuais "bacanas".
Muita mentira, muita meia-verdade, foi difundida para promover o "funk", dentro dessa discurseira que predominou até recentemente.
Até o "baile funk" de Copacabana de 17 de abril de 2016, havia essa retórica.
Só que depois o "baile funk" se revelou um "panelaço" na última grande manifestação pró-Dilma Rousseff no Brasil, que se aparentava como um "fogo amigo" não fossem os funqueiros "inimigos internos" da causa progressista.
A Furacão 2000, que promoveu o evento, tem relações históricas com o PMDB carioca, de Eduardo Cunha e Sérgio Cabral Filho (que se opôs aos alertas do pai que o "funk" era patrocinado pela CIA), e com as Organizações Globo.
O "funk" foi o carro-chefe de um processo de retrocesso cultural, através da música brasileira e de fenômenos comportamentais, que ganhou o apoio das esquerdas médias e esquerdas festivas.
A ideia é exaltar o entretenimento "popular" que, na verdade, era concebido a partir de valores, padrões e perspectivas do mercado do entretenimento e do poder midiático.
O discurso, cheio de apelos emocionais e retórica publicitária, mas travestidos de monografias, documentários e grandes reportagens, dava a crer que o jabaculê de hoje era o "folclore de amanhã".
Com essa pregação, que durante muitos anos foi atraente para as esquerdas em geral, vide a alta visibilidade e prestígio de seus ideólogos, o povo pobre foi deixado para fora da mobilização social.
Os debates progressistas foram esvaziados e tematicamente restritos a pautas político-econômicas.
Os debatedores, restritos a jornalistas progressistas, ativistas sociais, sindicalistas e outros especialistas, que falavam coisas de interesse do povo pobre, mas sem a participação do povo pobre.
O povo pobre estava "brincando de ser ativista" com o "funk", o tecnobrega, o "pagodão", o brega dos anos 1970.
Esse triste processo, que prevaleceu durante anos, resultou no esvaziamento dos movimentos progressistas.
Criou-se, depois, um contraponto de reacionários doentios e sociopatas que, de repente, passaram a "defender", de mentirinha, uma "cultura popular de verdade".
E veio então a manifestação anti-Dilma, os psicopatas fascistas das mídias sociais, o Legislativo e o Judiciário se voltando contra a presidenta, ela perdendo o cargo como água correndo pelos dedos.
Foi esse o legado da "periferia legal", da "pobreza linda" do brega, do "funk", dos popozões, dos cafonas, das vaquejadas, "bailes funk", micaretas etc..
Os intelectuais "bacanas", cinicamente, chegavam a defender aberrações como a prostituição infanto-juvenil nos "bailes funk" e "pagodões", a pretexto de ser "iniciação sexual das jovens pobres".
Resultado: esse ideal da "pobreza feliz" abriu os portões para Michel Temer e toda sua fauna de reaças, sociopatas, entreguistas, privatistas, midiotas, homofóbicos, racistas, machistas, feminicidas, valentões digitais etc etc etc.
Da "pobreza feliz" do brega, do "funk" e companhia, se desenhou o Brasil sombrio de hoje.
Daí que, na ressaca da "periferia legal", é urgente lermos os livros de Jessé Souza, como A Elite do Atraso. Pretendo ler o livro em breve.
Comentários
Postar um comentário