Um texto do Diário do Centro do Mundo, de Joaquim de Carvalho, ajuda a entender alguns dos motivos que contribuíram para o sucesso do golpe político que levou Michel Temer ao poder.
Os motivos foram muitos, sabe-se, mas Joaquim se focaliza num deles, que é a complacência dos governos petistas com o império da Rede Globo de Televisão.
O texto de Joaquim revela que as Organizações Globo detiveram 59% da verba do governo Lula, dez por cento a mais do que nos tempos de Fernando Henrique Cardoso.
Assim que fossem eleitos, Lula e Dilma Rousseff apareciam no Jornal Nacional para dar entrevista.
Há também o famoso episódio em que o paranaense Roberto Requião ter sugerido ao então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, o fortalecimento de uma rede de televisão pública.
José Dirceu disse que não havia necessidade, pois as Organizações Globo, acreditava o ex-líder estudantil, apoiavam o governo Lula.
Dilma Rousseff disse também que não havia necessidade de regulação da mídia, bastando apenas o telespectador mudar de canal.
Eu mesmo acreditei em coisa semelhante.
Em 2004, diante da proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo, eu me manifestei contra, achando que bastava o bom senso para combater os abusos da imprensa.
Eu mesmo admito que estava enganado, naquela época.
Hoje defendo a regulação da mídia e da imprensa, por acreditar que esse processo não é censura, mas uma fiscalização feita por vários segmentos da sociedade.
Mas a complacência com a Globo não para por aí.
As esquerdas acabam superestimando o poder da corporação dos Marinho.
E não se está falando de pseudo-esquerdistas, os sociopatas reacionários que fingem abraçar modismos progressistas para levar vantagem e atrair adeptos para seu lado.
Falamos mesmo de setores das esquerdas mainstream, ou "esquerdas médias", que ainda assimilam valores trazidos pela mídia hegemônica.
A apreciação do brega-popularesco é um sintoma de como as esquerdas assumiram com gosto as heranças culturais da Rede Globo.
Durante muito tempo, endossavam "ídolos populares" que primeiro apareciam na Globo.
Achavam que a Globo era meta-midiática, tudo que aparecia na Globo estava "acima dela" da mesma forma que estava "acima das ideologias, dos tempos e das classes sociais".
Um sintoma disso foi uma repórter de Caros Amigos achar que o funqueiro Mr. Catra seguia "invisível às corporações da grande mídia", mesmo aparecendo várias vezes no Caldeirão do Huck, apresentado por ninguém menos que Luciano Huck.
O "funk", antes de se tornar uma pretensa bandeira das esquerdas, era objeto de campanha maciça da máquina "global".
O "funk" aparecia em tudo que era ligado à Globo: da revista Quem Acontece ao canal educativo Futura, do Casseta & Planeta ao Jornal da Globo, de Malhação à novela das nove.
DJ Marlboro e a Furacão 2000 fizeram parcerias históricas com a gravadora Som Livre.
O documentário Sou Feia Mas Tô Na Moda, de Denise Garcia, ela mesma ex-RBS (parceira da Globo no Sul do país), só não recebeu o crédito da Globo Filmes para evitar denúncias de monopólio no mercado cinematográfico.
Só faltava William Bonner botar as mãos no joelho e rebolar um "funk". Estava perto disso. Mas na época não se podia se levantar da bancada do JN e "interagir" em pé com o telespectador.
No entanto, era tabu dizer que o "funk" era apadrinhado da Globo.
Quando escrevi "A Farsa Midiática do "funk carioca", há dez anos, muitos internautas nem queriam ler o texto, assustados com "tão cruel constatação" de que o "funk" era vinculado à Globo.
Recentemente, um grupo de manifestantes cometeu uma gafe de cantar um "funk" num protesto contra a Rede Globo, na sua sede original, no Jardim Botânico.
Pegou mal. Ainda mais quando os movimentos sociais, no mesmo dia, estavam protestando contra Temer (e, por conseguinte, a Globo) no centro do Rio de Janeiro.
Há muita gente, mesmo nas esquerdas, que grita "o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo" mas assimila a herança cultural da Rede Globo.
A coisa se compara aos filhos que decidem herdar o espólio de um ancião no seu leito de morte.
A Globo transmite hábitos, modos de falar, pensar e até os ídolos que muitos imaginam estar "acima das ideologias e classes sociais".
A gíria "balada", que muita gente fala quando se refere à vida noturna, é um produto difundido pela Globo em parceria com a Jovem Pan e através do carisma de Luciano Huck.
Ver que, neste caso, o apresentador e empresário que milita pelo "funk" mas também atuou na criação do "fundo cívico" exerce influência em parte das esquerdas, é muito, muito perigoso.
A Globo transmite até ídolos religiosos, como os paranormais de certa religião espiritualista, que viram unanimidade com a mais perigosa comodidade.
A complacência a esses ídolos da "fé raciocinada" é tão forte que um silêncio sepulcral se cercou quando um paranormal baiano, com seu evento "pacifista", foi apoiar João Dória Jr. e sua indigesta "ração humana".
Ninguém falou. Esses paranormais são mitos que se associam à imagem de um mundo de cor e fantasia.
Eles são os "filantropos da Globo". São os "sacerdotes à paisana" que a Globo apoia para fazer contraponto a Edir Macedo, Silas Malafaia e companhia.
Mas as esquerdas adoram esses paranormais. Até um, já falecido, que defendeu a ditadura militar num famoso programa da TV Tupi. Ele é o mesmo que teve filme biográfico pela Globo Filmes.
O cara enganou as esquerdas, fazendo mero Assistencialismo, lançando frases insossas de "lições de vida" e explorando as tragédias das famílias que perderam filhos prematuros.
Ele ainda se vinculou a imagens de crianças pobres sorridentes, tratadas pelo paranormal e dublê de ativista como se fossem dóceis animaizinhos domésticos.
O problema é este: basta mostrar crianças pobres sorridentes que qualquer religioso reaça vira "progressista".
Só não deve adotar postura LGBT. Nesse caso o paranormal da terra de Aécio Neves foi esperto: disse "compreender o homossexualismo", mas o atribuiu à "confusão mental" de quem assume tal escolha.
De vez em quando, algum manifestante de esquerda expressa alguns valores trazidos pela Globo.
E se o esquerdista que diz odiar a Globo fala o idioma da Globo, adota as gírias da Globo, usa o vestuário da Globo, cultua os ídolos religiosos da Globo e ouve as músicas da Globo, então a pessoa deveria se decidir entre duas coisas.
Ou essa pessoa confessa que nunca passou de uma tiete da Globo, ou abre mão desses valores.
Só não vale continuar acreditando que a "cultura da Globo" é a cultura do Brasil.
Caso contrário, estará apoiando a ideia de que o Brasil é uma concessão das Organizações Globo.
Aí não adianta o esquerdista que assim acredita chorar.
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