A intelectualidade pró-brega se define como "sem preconceitos". Mas é muito preconceituosa.
Ela defende a bregalização cultural, que trata o povo pobre de maneira caricatural e estereotipada, com base nos paradigmas que "nossos admiráveis" pesquisadores observam nos programas de auditório da TV.
E aí temos a visão preconceituosa da ideia de "combate ao preconceito".
Preconceito não pode ser somente rejeição. Há preconceitos muito cruéis marcados pela aceitação. Também se "gosta" de alguma coisa, sem prová-la, conferi-la ou verificá-la.
Há muita aceitação de ideias dotada da mais pura pré-concepção.
E aí vemos casos como o livro Que Tchan é Esse?, que a historiadora Mônica Neves Leme fez dedicado ao grupo É O Tchan.
Eu li vários trechos do livro, que foi uma das obras dentro do contexto da campanha pela bregalização do Brasil, que acabou enfraquecendo os movimentos sociais e as esquerdas que passavam pano na intelectualidade pró-brega.
Notei que Mônica Neves Leme queria gourmetizar o É O Tchan, com um trabalho, originário de uma monografia para a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), marcado de pura visão etnocêntrica.
É curioso que Mônica critica o etnocentrismo dos outros, dessa amórfica "elite estética" que não se sabe se são jornalistas culturais ou dondocas socialites, um monstro imaginário que deve ter a cara do Régis Tadeu e o corpo da Vera Loyola.
Mas o que ela escreve é puro etnocentrismo. Um "bom" etnocentrismo, que é calmo, supostamente generoso e falsamente progressista. Mas é etnocentrismo do mesmo jeito.
No seu juízo de valor, Mônica joga no É O Tchan atribuições inexistentes como a associação com os velhos lundus e maxixes, que são de grande valor artístico-cultural brasileiro.
Ela chega a classificar Beto Jamaica e Compadre Washington como "pesquisadores", com uma ironia positiva e alegre das aspas no termo "pesquisas", mas faz de tudo para dar uma imagem "sofisticada" ao É O Tchan.
Ela segue visões correntes do vitimismo do brega-popularesco, cuja rejeição, hoje em dia, é erroneamente comparada à rejeição que o samba e o maxixe receberam no século XIX e começo do século XX.
Isso é um erro, porque os contextos sociais são puramente diferentes.
E tornou-se chato o "funk" usar esse coitadismo todo para forçar a comoção pública. Um discurso que se repete como um disco arranhado.
Mônica Neves Leme contou com um farto material de teóricos da "cultura de massa", de cuja reputação não posso avaliar, por serem eles desconhecidos de minha parte.
Mas ela, sem dúvida alguma, buscou reforçar uma visão etnocêntrica, que dava ao É O Tchan a falsa imagem de "sofisticação" e "vanguardismo".
Eu tive um vizinho, quando eu morava no Resgate, em Salvador, entre 1995 e 1996, que tocava os discos do É O Tchan o tempo inteiro.
Eu não via sofisticação alguma. Os discos eram apenas bem produzidos, porque eram de grande gravadora e precisavam ser apresentados para um público mais elitista, alvo do mercado de blocos do Carnaval baiano.
As canções eram toscas, as letras não só eram chulas mas também bastante primárias. Desde quando jargões como "bem gostosinho" são comparáveis às letras de antigos lundus?
Há musicalidade no É O Tchan? Não. No seu som, não há nota alguma que deixe marca.
Influência de samba-de-roda? Este é um erro grosseiro da intelectualidade "bacana" e daqueles que repetem as mesmas choradeiras, como papagaios.
O som do É O Tchan, na verdade, é pastiche ruim dos sambas de gafieira. Não há um pingo do suor do povo do Recôncavo Baiano lá.
É mais fácil dizer que "Sympathy for the Devil", dos Rolling Stones, era influenciado pelo samba-de-roda. José Ramos Tinhorão comparou "I Was Born To Love You" do Freddie Mercury como um arremedo de marchinha de Carnaval carioca.
O grande problema é que nossa intelectualidade é corporativista, complacente e, em certo sentido, um tanto burra.
As esquerdas passam pano na intelectualidade pró-brega, e essa flanelização custou caro, pois a Cultura é um dos setores mais ameaçados pelo governo Jair Bolsonaro.
E nossos intelectuais, independente do espectro ideológico, endeusam todo aquele que acha a bregalização o máximo.
Daí a "santíssima trindade": Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna.
Não sou elitista, não sou um esteticista doentio, não sou um preconceituoso porque acompanhei os espetáculos popularescos na televisão.
Daí achar estranha toda a rasgação de seda em torno dos fenômenos popularescos e seus ideólogos intelectuais.
Isso mostra o quanto nossa intelectualidade é deficitária, num meio em que a burocracia acadêmica demoniza o senso crítico nos cursos de pós-graduação.
E foi tanto esse lero-lero (ops, perdão, Edu Lobo, eu quis dizer "lepo-lepo") da intelligentzia "mais legal do país" que chegamos à fragilidade brasileira de hoje.
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