Já se falou muito nesse assunto, mas nesse Brasil marcado pelo profundo atraso sociocultural, que faz com que nos sentíssemos ainda na Era Geisel, é necessário falar mais uma vez sobre os verdadeiros resmungões.
Muito se diz que o pior resmungão é aquele que se revolta com tudo, que se indigna com muitos problemas e que "vê tudo errado". E aí outras pessoas é que reclamam do outro que "reclama demais" da vida.
Só que aí a gente tem que parar para pensar. Qual é o pior resmungão? Ele se define pela quantidade de queixas ou pela falta de relevância do motivo de seus lamentos?
O Brasil, como um país profundamente atrasado, está cheio de problemas. Os retrocessos ocorreram desde 1964, e foram tantos retrocessos que a parte mais antiga, como num perecimento às avessas, é agora definida como "relíquia saudosista". O culturalismo vira-lata da Era Geisel é hoje tido como "nostalgia maravilhosa".
A coisa se deu de tal forma que a mediocridade de 30 a 50 anos atrás é hoje tida como "genial", alvo de "muitas saudades", recebe elogios, e aí acumulamos retrocessos sucessivos e o Brasil foi obrigado a montar um "novo normal" de tal forma que tornou-se difícil recuperar o que foi perdido. Enquanto isso, o que era visto como uma porcaria vergonhosa, hoje é "artigo de grande valor".
E quem reclama dos problemas mais antigos, do lixo cultural e até político acumulado há décadas, torna-se vidraça. Se a pessoa reclamava de um problema grave há 50 anos, ele era ouvido e recebia apoio de muita gente. Hoje, ele faz a mesma queixa e é desprezado. E o pior é que quem apoiava ele em outras épocas passou a passar pano nos problemas que antes lhe incomodavam.
É tanto problema que muita sujeira foi posta debaixo do tapete. São tantas as dívidas sociais com os oprimidos, desde o extermínio de índios e a escravidão dos negros, a bola de neve da pobreza cresceu de tal forma que uma geração de intelectuais culturais, treinada pelo tucanato acadêmico, foi, mesmo com base na Teoria da Dependência de Fernando Henrique Cardoso, sabotar o projeto progressista de Lula mudando o significado de pobreza, de problema para uma pretensa identidade sociocultural. Ou seja, ser pobre deixou de ser uma condição humilhante para ser uma suposta etnia.
Aí você vê barbaridades como Michael Sullivan querer destruir a MPB, nos anos 1980, com denúncias reveladas por Alceu Valença - que não deu nome aos bois, mas falou justamente do esquema de Sullivan, Paulo Massadas e Miguel Plopschi de sucateamento da música brasileira - , mas de repente o mesmo Sullivan passa a ser acolhido com amores pela MPB dotada de uma forte Síndrome de Estocolmo.
Aí você vê coisas como Mário Kertész, prefeito de Salvador e filhote da ditadura militar, paralisar obras importantes em Salvador, prejudicando o povo baiano, em maioria negro e pobre, para montar sua fortuna pessoal através de empresas fantasmas, e daí montar sua Rádio Metrópole, com direito ao culto à personalidade em torno de sua pessoa, e aí o ex-prefeito, agora dublê de rádiojornalista, brincar de ser jornalista sério e de intelectual de esquerda e ele se torna querido por aqueles que poderiam repudiá-lo.
Aí você não pode reclamar, porque as queixas que antes recebiam apoio hoje são desprezadas. As passagens de pano são muito constantes, até de quem podia contestar energicamente tempos atrás. E quem vê essa sucessão de problemas acumulando a cada época tem que engolir sapos, pois de erro em erro se acha certa uma coleção de erros passados.
Reclamar muito é lembrar de tantos problemas, de tantos erros e tantas barbaridades que se acumularam e, no entanto, a pessoa é demonizada por ver muita coisa errada, mesmo que seja em situações cotidianas. O resmungão acaba sendo medido pela quantidade de queixas, num país em que se aconselha aceitarmos as piores coisas. Se é para nos tornarmos baratas - daí o termo "sangue de barata" - , como na ficção de Franz Kafka, temos que aceitar numa boa.
Mas é um erro medir o queixoso pela quantidade de erros que o incomodam e o fazem reclamar o tempo todo. Só uma mentalidade ainda marcada pelo AI-5 para não aceitar quem critica muito o tempo todo.
O verdadeiro resmungão é, na verdade, quem não gosta de ver outros reclamando, mesmo com razão. O "médium da peruca", que transformou o Espiritismo brasileiro num chiqueiro, era um dos piores resmungões, não porque reclamava de tudo. Muito pelo contrário. O charlatão religioso, oficialmente conhecido como o "lápis de Deus", nunca gostou de ver gente reclamando da vida. Ele não suportava sequer ver gente gemendo de dor, apesar dele ter passado os últimos anos da vida muito doente.
Vergonha alguém gostar de "médiuns" e "madres" ranzinzas, pretensos símbolos de caridade, bondade humana e até de amor e beleza, essas pessoas são na verdade resmungonas e intolerantes, porque não querem arcar com os problemas e querem que todos nós forcemos a barra e achar que está tudo bem.
Isso na verdade é fruto de uma preguiça de encarar os problemas. Se a pessoa reclama muito, é porque ninguém resolve esses problemas que incomodam tal pessoa. É fácil pedir a outros nunca reclamarem, aceitar as adversidades da vida, mesmo quando elas acumulam de forma descontrolada. Fácil reprimir o senso crítico, que levaria à luz erros e abusos que ameaçariam os privilegiados de agora.
Trata-se de uma sonegação moral. E sonegação pede um calote moral. Daí que a aceitação das piores adversidades buscou até uma doutrina religiosa medieval, a Teologia do Sofrimento, que influi mais no Espiritismo brasileiro do que qualquer ideia trazida por Allan Kardec. E ninguém assume o medievalismo desses conceitos. Quanta falsidade.
E é tanta hipocrisia, tantos erros, tantos problemas aberrantes, que o ato de ficar calado diante disso tudo não pode de jeito algum ser vista como ato de coragem ou superioridade e força moral. É o oposto disso, um ato de covardia e medo que faz qualquer pessoa moralmente mais fraca, diante da preguiça de resolver problemas e injustiças. Aceitar tudo isso é apenas ficar na zona de conforto de deixar tudo para lá. Mas tudo isso custará muito caro para os resignados de plantão.
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