De maneira bastante surpreendente, muitas das ideias expressas pelo escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) se encaixam perfeitamente na realidade brasileira de hoje, marcada pela hipocrisia gritante de uma alta sociedade enrustida, de uma burguesia que já apoiou, num passado não muito distante, o golpe militar de 1964 e, agora, posa de "democrática" querendo até a reeleição do presidente Lula.
Wilde, que em seu tempo era um britânico de esquerda - lembremos que a Irlanda ainda fazia parte do Reino Unido, tornando-se independente dele só em 1918 - , teve, pelo menos, quatro obras cujos conteúdos correspondem a problemas que hoje fazem parte do cotidiano brasileiro, graças à elite do bom atraso, a hipócrita burguesia de chinelos, invisível a olho nu, que se acha "pobre de marré de si" só porque fala "as mulé e os cara" na sua linguagem cotidiana.
O Rouxinol e a Rosa (The Nightingale and the Rose), conto do livro O Príncipe Feliz e Outros Contos (The Happy Prince and Other Tales), de 1888, mostra o drama de um rapaz apaixonado por uma mulher. Ele pediu a um rouxinol que lhe trouxesse a rosa mais bonita para que o jovem pudesse presentear para a moça, e o rouxinol, para que pudesse obter a rosa, teria que não apenas cantar mas espetar seu peito com o espinho da rosa, para que o sangue do pássaro pudesse dar à flor a cor vermelha mais bonita.
No fim, pássaro e flor morrem e o jovem pegou a flor para dar à moça, que, todavia, recusou, pois havia recebido de presente uma joia preciosa dada pelo filho de uma camareira. Desiludido, o jovem que iria presentear a garota com uma rosa decidiu se refugiar nos estudos e na leitura de livros.
Isso lembra muito os que ultimamente são chamados de "Incels", e que correspondiam ao antigo sentido de nerd, antes desta palavra ser apropriada pelo universo geek. O solteiro caseiro, amoroso, sensível embora eventualmente bastante racional, com boas intenções mas incapaz de obter uma companheira devido aos jogos de interesses da vida amorosa, em que até as esquerdas identitárias definem o "golpe do baú" como uma "escolha positiva".
O Retrato de Dorian Gray (The Picture of Dorian Gray), livro de 1890, cuja tradução de João do Rio (escritor carioca discípulo de Wilde) eu tive a oportunidade de ler, mesmo com a "graphia" de 1927, mostra o fenômeno surreal do protagonista, Dorian, que busca a eterna juventude física e, portanto, vê seu rosto envelhecer-se no quadro, enquanto o rapaz permanece com sua aparência juvenil mesmo no decorrer dos anos.
A obra, na verdade, fala de ilusão, da permanência da imagem primária de um ídolo enquanto a sua imagem real perece fora das impressões do cotidiano. Ou seja, Dorian tenta ser o eterno jovem diante da sociedade, mas seu quadro, o registro reservado para a posteridade, registrará o envelhecimento gradual que, normalmente, a pessoa experimenta na aparência física.
Mas isso pode ter outros sentidos. Me chega o caso de Lula, hoje um pelego neoliberal que anda atônito com sua queda de popularidade. O atual presidente do Brasil, neste mandato em que ele usou e abusou nas concessões à direita, tenta se sustentar no mito do antigo esquerdista, que a mídia solidária, principalmente o Brasil 247, trabalha com desesperado esforço. Enquanto Lula adere à praxe neoliberal, seu imaginário tenta explorar a imagem mítica do antigo líder sindical.
É possível também outra interpretação da obra de Wilde, quando vemos que Lula está muito envelhecido em aparência, aparentando 20 anos a mais do que o padrão que hoje se tem do homem de 78, 79 anos. O presidente brasileiro apenas põe creme antirrugas para disfarçar, mas em vários momentos nota-se que ele, fisicamente, está tão velho que em certas poses ele parece cadavérico. É sério.
Para compensar isso, Lula se comporta como um menino mimado da História Geral. Tendo lido, enquanto preso, várias biografias, Lula passou a sonhar em ser uma personalidade histórica, como sonha uma criança de oito anos. "Sou fascinado por biografias. Nesses 580 dias, li as de Tiradentes, Fidel, Mandela, Prestes, Chávez, Putin, Marighella, entre outros", disse Lula, em relação à leitura de livros nos 580 dias em que esteve preso em Curitiba.
Lula, então, tratou o processo de se tornar "personalidade histórica" como se fosse uma gincana escolar. Posava de orador, caprichava em frases previsíveis mas "corretas" com o fim de forjar mensagens para a posteridade, brincava de ativista político e humanitário. Não é um processo natural, em que os atos valem mais do que a busca por prestígio, pois não se via um Nelson Mandela ou Martin Luther King sonhando em ser personagens históricos. Eles faziam História, pelos seus atos, não pela cosmética que Lula busca em suas aparições no exterior.
A obsessão de Lula, além de mostrar uma teimosia infantil, de brincar de ser "visionário" e "humanitário", cometeu erros grosseiros como falar que "O tempo vai dizer que estou certo (sobre os comentários do genocídio do governo de Israel)". Um personagem histórico não adota esse procedimento, não dá ordens para o futuro se ajoelhar a ele e nem a História se rebaixa a serviçal do ativista de uma época. Portanto, essa obsessão em Lula virar "grande líder mundial" soa uma criancice que contrasta muito bem com sua aparência terrivelmente envelhecida que faz a esposa Janja, já vinte anos mais nova, parecer sua neta.
O Modelo Milionário (The Model Milionaire), conto do livro O Crime de Lord Arthur Saville e Outras Estórias (The Lord Arthur Saville's Crime and Other Stories), de 1891, mostra o caso do jovem pobre Hugh Erskine, o Hughie, que não consegue se casar com a namorada Laura Merton porque seu pai, o Coronel, lhe exigiu uma renda de dez mil libras.
Frustrado, Hughie recorreu ao amigo artista plástico, Alan Trevor, que estava pintando um quadro tendo como modelo um velho caraterizado como um mendigo. Comovido, Hughie doou a única moeda que tinha para o mendigo, sem saber que este é o modelo milionário da narrativa, o Barão Hausberg, um dos homens mais ricos da Europa.
E aí vemos a elite do bom atraso brasileira, a burguesia que fala português errado, prefere ouvir "funk" a Bossa Nova, toma aguardente de vez em quando em biroscas da esquina e é fanática por futebol. Uma elite cheia de dinheiro, embora sem o poder dos donos do mercado financeiro, com apetite desmedido para o consumismo, mas que tenta dar a falsa impressão de que é "pobrezinha", caprichando na pose de "gente como a gente", mas se atrapalhando com ideias etnocêntricas em relação ao povo pobre, manifesta sob a desculpa do "combate ao preconceito".
Aliás, é nessa elite que há mulheres com aparência europeia que vivem da apropriação cultural de dançarem sambas como se fossem negras estereotipadas, chegando mesmo a rebolarem ao som de letras machistas como aquele samba do "Bole-bole" que fez muito sucesso nos anos 1970, auge do culturalismo da ditadura militar que hoje é alvo do pretenso saudosismo dessa elite, que de maneira seletiva, só atribui viralatismo cultural à hidrofobia do bolsonarismo e da mídia associada, direta ou indiretamente.
Mas o mais caraterístico conto em relação à realidade brasileira de hoje é O Amigo Dedicado (The Devoted Friend), também de O Príncipe Feliz e Outros Contos (The Happy Prince and Other Tales), de 1888, por se tratar de um alerta para as armadilhas humanas sob um comportamento aparentemente desprovido de raiva e agressividade.
O conto mostra o moleiro, o grande Hugh (não confundir com o outro Hughie), um rico homem que compra flores belíssimas cultivadas pelo jardineiro, o jovem Hans. Hugh tem a mania de fazer discursos cheios de palavras belíssimas, e manifesta falsa solidariedade ao jovem jardineiro. Hugh personifica o egoísmo travestido de generosidade e desprovido de raiva.
A certas alturas Hugh, perguntado por um de seus filhos se não seria possível convidar Hans para a ceia de Natal da famíia, recebeu uma resposta negativa. Hugh, com sua dócil e simpática hipocrisia, disse que a fartura da comida iria "perturbar" o rapaz, daí a "necessidade" de privá-lo de tamanho benefício.
Em outro momento, Hugh, em troca das flores adquiridas do jardim de Hans, lhe dá de presente um carrinho de mão quebrado. Dias depois, Hugh pede para Hans lhe fazer um favor, num dia de intensa tempestade e, no caminho de volta, Hans tropeçou na rua alagada e morreu afogado. No enterro, Hugh fez um discurso "exaltando a amizade e a virtude".
Isso lembra muito a intelectualidade que, "sem preconceitos", defendeu a bregalização cultural (ver meu seminal livro Esses Intelectuais Pertinentes...), sempre defendendo uma cultura de qualidade somente para os ricos, enquanto os pobres têm que se contentar com a precarização cultural.
Os pobres, no passado, produziram sambas, baiões, catiras e outros ritmos vibrantes que, no entanto, foram apropriados pelas elites ricas, tal como o moleiro Hugh se apropriou das flores. E, se Hans recebeu um carrinho de mão quebrado de presente, o povo pobre brasileiro recebe de presente ritmos pop comerciais de valor duvidoso e que servem de "matéria prima" para os patéticos sons popularescos que são muito tocados por rádios que, apesar de extremamente populares, são propriedades de poderosas oligarquias regionais, estas a serviço dos moleiros que tomam a "alta cultura" somente para si.
Mas também o moleiro Hugh pode ser, muito bem, o Espiritismo brasileiro ou outras religiões hipócritas e precariamente assistencialistas que se utilizam de um discurso dócil e desprovido de raiva, com seus pregadores sempre sorrindo, embora eles explorassem o sofrimento humano de maneira mais perversa e impiedosa do que os pastores neopentecostais visados negativamente pela sua hidrofobia.
Os "médiuns" brasileiros são os moleiros Hugh do referido conto. Defendem o sofrimento e o prejuízo dos aflitos de tal maneira que quase ninguém percebe. Defendem que as pessoas tenham que suportar desgraças e adversidades sem fim, até chegar abaixo do fundo do poço, com uma retórica tão dócil e suave que muitos incautos pensavam serem ideias progressistas e libertadoras.
Esse estelionato religioso com palavras melífluas já recebeu críticas do sociólogo Jessé Souza que, sem determinar as seitas religiosas, falou na "teodiceia do sofrimento" (ou Teologia do Sofrimento, o nome mais conhecido) que pregava que a humanidade deveria viver num "vale de lágrimas" em troca de "uma vida melhor em outro mundo". Um discurso cheio de palavras bonitas e suaves, que só comove mesmo quem não sofreu de verdade.
E aí vemos o quanto a elite do atraso repaginada para o cenário "democrático" atual, a elite do bom atraso, adora tanto "médiuns" e pobres obedientes, como os funqueiros que, mesmo forjando pretensa consciência social - recentemente, alguns deles foram fazer um documentário sobre "desigualdade social", em troca de generosas verbas do Ministério da Cultura do atual governo Lula - , porque simbolizam um mundo de pobres obedientes e ricos metidos a bonzinhos.
Dessa maneira, temos os Hans brasileiros que obedecem aos papéis sociais humilhantes determinados, sob sorrisos falsamente benevolentes, pelos grandes Hugh tropicais que, agora, se livraram do fardo bolsonarista, já que Bolsonaro e Moro ficaram para pagar a conta dos 524 anos de atrocidades de exploradores, aristocratas, escravistas, golpistas, trapaceiros etc.
Afinal, os descendentes das velhas oligarquias agora são "bonzinhos", "progressistas", "democráticos", "alternativos", "esquerdistas", "da paz" e "tudo de bom". Até que os filhos dessa burguesia de chinelos lhes perguntem se vão convidar os miseráveis para passar o Natal com as famílias abastadas.
Aí essa burguesia retoma o viés elitista e diz não, preferindo ver os miseráveis resignados com seu sofrimento nas cracolândias da vida, sob o risco de morrerem afogados nas ruas durante violentos temporais com muita chuva e trovoadas. Pelo jeito, o "amigo dedicado" é bem brasileiro.
Comentários
Postar um comentário