A classe média abastada não suporta o pensamento crítico. Ela, que toma as rédeas da dita opinião pública da "democracia de um homem só" de Lula - na qual só um decide, no caso, o presidente, e o resto vai festejar, brincar, dançar e consumir - , só quer ler textos "positivos", que não criticassem seus vícios, que não lembrassem que nosso país está culturalmente deteriorado, com a supremacia de subcelebridades e ídolos musicais popularescos e que tenhamos que acreditar, com a ingenuidade de crianças acreditando em Papai Noel, que o Brasil irá virar país desenvolvido este ano.
Neste sentido, de alguma forma regredimos em relação à outra "democracia" conduzida pela classe média abastada: a de 1964-1968. Embora fosse uma ditadura militar, o cenário da época permitia a expressão do pensamento crítico, mesmo de maneira clandestina. Era clandestina, mas agregava mais gente. A pessoa podia o risco de ser presa, torturada e morta, mas era punida atraindo um considerável número de seguidores.
Em certos casos, nem havia esse risco. O crítico musical José Ramos Tinhorão, no livro Música Popular: Um Tema em Debate, lançado em 1997, publicou um capítulo que na verdade reproduzia uma matéria de 1965 sobre o Carnaval do Rio de Janeiro, naquele ano em que a ex-capital do Brasil comemorava seu quarto centenário de fundação.
O relato de Tinhorão é chocante, constatando a sutil decadência do Carnaval carioca como uma festa popular, com a interferência empresarial que descaraterizou o evento e o transformou num festejo chique, com coreógrafos estrangeiros, celebridades sem vínculo com as raízes populares dos morros cariocas e uma estrutura empresarial que prejudicou os antigos responsáveis pela festa, os favelados que acabavam trabalhando sem receber uma digna remuneração.
Hoje, o que temos? Esse mesmo cenário deturpado, essa tragédia oculta que se tornou o Carnaval carioca, é atualmente tratado como se fosse uma "genuína festa popular". Fora umas críticas pontuais à intervenção do jogo-do-bicho, a imprensa atual tenta promover um faz-de-conta de que o Carnaval carioca continua tão popular quanto suas origens.
Com o cenário cultural deteriorado e com a supremacia quase totalitária da música popularesca e de valores culturais difundidos pelo consórcio midiático mais populista - tipo SBT, Rede TV!, Band, Record, as FMs "populares demais" e as revistas de fofocas - , o Brasil no entanto está oficialmente vivendo um momento supostamente glorioso, do qual somos desaconselhados a contestar.
Não se vê na prática as tão alardeadas façanhas de Lula, cuja pretensa grandeza não parece sair das palavras fáceis de relatórios e outros ritos linguísticos. Os preços continuam caros, os salários baixos e o "povo" que contribuiu para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi a classe média abastada que não parece ter cuidado em comprar produtos mais baratos.
Mas não podemos fazer críticas, mesmo quando sabemos que, ontem, faleceu, aos 94 anos, a economista Maria da Conceição Tavares, que nos anos 1980 se destacou com uma visão bastante crítica dos problemas econômicos brasileiros. Hoje tudo é conto de fadas e temos que fingir que, com picanha aumentando a setenta reais e o leite a seis e meio, os dois produtos sofreram queda vertiginosa de preço.
A nossa classe média abastada pode se autoproclamar "democrática e de esquerda", supostamente contrariando a orientação de seus avós que não suportavam ver João Goulart governando o Brasil. Mas ela não consegue, por muito tempo, esconder seu DNA golpista, mesmo que seja pelas "boas intenções" de apoiar o medíocre terceiro mandato de Lula sem fazer um pio contra, sob a promessa de que, calados e resignados, sejamos premiados pelo "bom comportamento" de gente obediente com a entrada do nosso país no clube dos desenvolvidos.
A classe média alta não aceita ser criticada pelos hábitos estranhos: fumar cigarros, jogar comida fora, gritar e dar gargalhadas em plena madrugada sem o menor escrúpulo de incomodar a vizinhança. Boicotam sem cerimônia textos que denunciem esses hábitos. E ainda se arrogam de dizer que tais vícios são expressão de sua "felicidade" e "liberdade".
Daí não ser difícil constatar que o "melhor momento" em que vive o Brasil em toda a sua História não é uma ideia compartilhada por todo mundo, mas por uma elite de classe média que está livre tanto do poder duro (hard power) das antigas ditaduras quanto das "velhas" inquietações de proletários, camponeses, estudantes, sem-teto e pensadores dotados de distopia existencialista.
O "paraíso" lulista é apenas um benefício de uns poucos milhares de pessoas, do "clube de membros VIP" da "democracia de um homem só" do presidente Lula. Essa elite, beneficiada economicamente desde os tempos do "milagre brasileiro", se fantasia de "povo" sem convencer senão os seus pares.
E aí vemos a elite do bom atraso, que não aceita críticas, usufruir hoje a sua "democracia" e "liberdade", como faziam seus avós nos tempos da ditadura militar. Sempre a "democracia" de quem está bem de vida, o resto é o resto. E, depois das lágrimas de crocodilo em razão do falecimento de Maria da Conceição Tavares, a "boa" sociedade depois a esquece e vai brincar e pular o "Xibom Bombom".
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